Adolesci
e tornei-me jovem dos anos setenta para os oitenta. Cidade pequena, sem muito
que fazer, inventávamos nossos divertimentos: “assustado” aos fins de semana,
ao som do vinil, para dançar, solto, o hit “Pertinho de você”, de Elizângela
ou, juntinho, “Et si tu n’existais pas”, de Joe Dassin; conversas na pracinha, brincadeiras na rua.
Em meio a tudo isso, a leitura era companheira inseparável. Nesse tempo,
vivemos o auge do Círculo do Livro.
Negócio
bem bolado entre editoras do Brasil e da Alemanha, o Círculo publicava
excelentes obras em edições de boa qualidade. Recebíamos a revista com os
títulos disponíveis e tínhamos a obrigação de fazer um pedido periodicamente
para permanecermos sócios. E, na estante, tínhamos de Machado de Assis a Milan
Kundera, com capa dura e preço acessível. Entre os livros que vez por outra
folheio, ruminando o grifado de outrora, está “Recado de Primavera”, de Rubem
Braga.
Gosto
especialmente da crônica “o chamado Brasil brasileiro.” Lado a lado, opiniões
de vultos que pensaram o país. De Capistrano de Abreu a João d’Azevedo, sobre o jaburu, ave símbolo de
nossa terra, que passa os dias “com uma perna cruzada na outra, triste,
triste...”; de Paulo Prado, no seu “Retrato do Brasil”, a dizer que “numa terra
radiosa vive um povo triste”, talvez marcado pela mesma tristeza deletéria, que
levou Manuel Bandeira a, poetizando, tomar um porre de alegria, numa
terça-feira gorda, em que ninguém se lembra de política, nem dos oito mil
quilômetros de costa: “uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza,
hoje tomo alegria”. E a partir da conhecida frase “ou o Brasil acaba com a
saúva ou a saúva, com o Brasil”, Rubem Braga constata que, em relação à praga
das formigas, “não matamos. Não morremos. Convivemos.”
Apesar
de começar garimpando pensamentos sobre nossa triste sina, o cronista termina
contando um caso exemplar, de outro modelo de Brasil, o da solidariedade
humana. Sebastiana, lavadeira pobre do morro do Cantagalo, teve o barraco
invadido pela chuva, sendo razoável presumir que as águas lhe levaram quase
tudo do quase nada que possuía. Contudo, em vez de se maldizer, ela descia os
caminhos escorregadios com a trouxa de roupa na cabeça, e a respeito das águas
da chuva, a mulher simplesmente dizia: “Mas enfim, isso é bom para a lavoura.”
Há
décadas adolescido, tenho cá minhas saudades, mas não me faço saudosista. Percebo o tempo presente – ainda muito
imperfeito – como menos imperfeito que o pretérito. Se para meus filhos não
temos mais “assustados” e o Círculo do Livro já não há, outros círculos se
abrem às novas gerações. Nessas décadas, não só conseguimos sair da ditatura,
mas reduzimos desigualdades, alargamos liberdades e muitas pessoas passaram a
ter acesso a mais esferas da cidadania.
Ainda
nos resta, isso é verdade, muitas pragas a combater, piores que as saúvas,
enquanto não as matamos, nem morremos, mas com elas convivemos. Por isso não
nego que às vezes fico meio jaburu, quando me deparo com notícias de artefato
detonado por um ser humano que mata outro ser humano, seja cinegrafista no
trabalho ou torcedor no estádio; justiceiro amarrando no poste um guri, seja
este quem quer que seja; o crack que violenta, a violência que mata; uns e
outros chafurdando no mesmo lamaçal do vale-tudo tanto o bico do tucano, que
era para ser mais um bonito símbolo do Brasil, quanto as pontas da estrela, que
um dia imaginei fosse alta no firmamento da ética.
Sei, porém, que o
Brasil é mais que caciques políticos se canibalizando para não largar as garras
do poder; mais que país do carnaval e futebol manipulados como ópios de um povode triste sina. Podemos, apesar de tantas imperfeições e tristezas, ser o
Brasil que se constrói cotidianamente com base nos exemplos de trabalho, ética
e solidariedade, como a da lavadeira do Cantagalo. É inspirado nela que a
crônica de Rubem Braga se encerra com um sopro de esperança, de que “o Brasil
é, principalmente, uma certa maneira de sentir”. E eu, de minha parte, diria
que o Brasil, ao menos aquele com o qual sempre sonhei e espero morrer
sonhando, pode ser mais que um país de
desterrados em sua própria terra, no dizer de Sérgio Buarque de Holanda; ele
pode ser, Deus sabe o dia, não mais o país da violência, da corrupção e do
“jeitinho”, mas de um novo jeito de viver, de conviver e de amar.
Parabéns pela inquestionável capacidade de unir o uso da lingua culta de modo tão coloquial e com tanta propriedade ao ponto de nos fazer compreender sua mensagem com tanta clareza. Parabéns por esse "seu jeito de ser" professor. O texto é simplesmente fantástico.
ResponderExcluirAuricélia Rossana