O
sobrevivente é um dos poemas do livro de estreia de Carlos Drummond de
Andrade, intitulado Alguma poesia, publicado
em 1930. No seu primeiro verso, o poeta
diz que é impossível escrever uma linha sequer de verdadeira poesia àquela
altura da evolução da humanidade, pois o último trovador morrera em 1914.
Ao comentar o poema, José Miguel
Wisnik lembra que Walter Benjamin, no ensaio sobre “o narrador”, afirma que, em
outros tempos, os guerreiros retornavam das batalhas convertidos em narradores
grandiloquentes de seus feitos. Já os soldados da primeira guerra mundial
retornaram emudecidos para estranheza de seus lares. Para Benjamin, com aquela
guerra, evidenciou-se um processo devastador que não podemos mais conter.
Aqueles homens não tinham a autêntica capacidade de narrar, pois o que viveram
não os tornou mais ricos em conhecimento e sabedoria. Ao contrário, estavam
muito mais pobres em experiências de vida que pudessem comunicar. Nos campos de
batalha, depararam-se com um cenário em que as máquinas de guerra sobrepujavam
qualquer escala humana: “uma geração que ainda usara o bonde puxado por cavalos
para ir à escola, encontrou-se sob o céu aberto em uma paisagem em que nada
continuava como fora antes, além das nuvens’ e, debaixo delas, ‘num campo
magnético de correntes devastadoras e explosões, o pequenino e quebradiço corpo
humano.”
Daí que o poema, após falar da morte
do último trovador anônimo em 1914, dirige o olhar para o mundo da época, com
máquinas complicadas para necessidades simples, onde para fumar um charuto,
aperta-se um botão; paletós são abotoados por eletricidade e o amor é feito
pelo “sem-fio.” E constata que os seres humanos não melhoraram, mas se matavam
como percevejos, embora percevejos heroicos renascessem, para concluir dizendo
que “inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. E se os olhos reaprendessem
a chorar seria um segundo dilúvio.”
Parece que não reaprendemos a
chorar, pois em lugar de um segundo dilúvio, tivemos uma segunda guerra, mais
sofisticadamente devastadora. Com tecnologia de última geração construímos
campos de concentração e extermínio, em que gente “civilizada” descartava gente
como se fosse lixo, além de artefatos de morte nunca antes vistos, que nos
legou a Rosa de Hiroshima de que fala
Vinícius de Moraes, a “rosa radioativa, estúpida e inválida, sem cor, sem
perfume, sem rosa, sem nada.”
Todavia, apesar de iniciar dizendo
ser impossível compor um poema naquele estágio civilizatório, Drummond termina
seus versos com uma espécie de post
scriptum (P.S), que eu, particularmente, escuto como um sussurro do poeta
ao pé do ouvido: “(Desconfio que escrevi um poema).”
Como “o sobrevivente”, às vezes
penso que estamos construindo um mundo inabitável: quando vejo avenidas
povoadas de carros sofisticados trafegando na velocidade de charretes e
travando as cidades; ouvidos entupidos pelos ruídos das ruas e por vibrações
ensurdecedoras e “emburrecedoras” da indústria cultural; olhos grudados nas
telas do mundo virtual, que mais isola que aproxima; mentes dóceis à hipnose da
grande mídia, dominada pelo supremo mercado; corações indiferentes ao
sofrimento e à injustiça; mundo da violência banal, do desamor trivial.
Por outro lado, como no arremate
daqueles versos, também desconfio que apesar de tudo, é possível escrevermos
bons poemas no livro da vida. E mesmo que não haja uma receita pronta para cada
um de nós, imagino que, se quisermos ser sobreviventes nesse cenário
aparentemente hostil, não há outro caminho a não ser procurarmos estabelecer,
com os outros e com o mundo, relações de respeito e amor, que poderão encher
nossas vidas de experiências enriquecedoras. Sem estas, é impossível ter alguma
coisa boa para comunicar
Belíssimo texto, professor.
ResponderExcluirÓtima análise!
ResponderExcluirÓtima análise!
ResponderExcluirObrigado! Muito boa a análise.
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