Nossos jardins



A cidade dos homens, dividida e violenta, por vezes me atemoriza e entristece. Nela coexistem, lado a lado, feudos e guetos. Condomínios fechados e catedrais do consumo erguem muros de concreto e torres de vigilância, para se apartarem e apartarem comunidades instaladas na vizinhança, onde quase sempre cidadania não há. E acabamos nos fechando não apenas por fora, mas por dentro de nós mesmos.  Nesse cenário, sonho com outras formas de convivência social, em que dentro e fora das pessoas haja mais espaço para cultivar jardins, como o de Rubem Alves, que me vem à mente em retalhos de lembranças de um vídeo apresentado em nossas aulas de Teologia, pelo saudoso mestre Paulo Afonso.

 Ao abrir a porta, Rubem Alves nos convida a um passeio pelo jardim. Não é um jardim qualquer, mas um lugar fundado no sonho, “testemunha de uma felicidade ausente.” Ele não começa na terra, na enxada ou na semente; antes de existir no mundo sensível, já havia brotado no coração do autor.

Naquele jardim cada flor tem uma razão de ser, uma história. A flor do imperador, com cheiro de pêssego; madressilva, a mãe da floresta, de flor com gosto de mel; o manacá da serra, que tem capacidade de dar flores de duas cores ao mesmo tempo, roxas e brancas; a murta, sinal da esperança messiânica; no Antigo Testamento, quando se falava na felicidade vindoura, dizia-se “a murta vai florescer”; a manhã gloriosa, cuja flor vive apenas sete horas, e no dia seguinte já está repleta de outras flores, símbolo da perene renovação da vida.

Afora o jardim, o autor nos leva a uma horta, no fundo do quintal. Entre as ervas ali plantadas, destaca-se a ora-pro-nóbis, verdura de gente pobre, cujo nome tem a ver com a situação dos humildes, pois toda vez que o pobre come é motivo de oração. Assim, cada cantinho daquele local mágico representa uma redescoberta da felicidade.

Pena, porém, que nem todo mundo goste de jardins. Como lembra o vídeo, talvez muitas pessoas preferissem que flores e gente fossem de plástico, que não dão trabalho; só assim não teriam de lidar com a vida e a morte.

No meio do jardim há também um sino, que faz ecoar a voz do vento, significando a imprevisibilidade dos tempos da natureza, diferente do outro, no alpendre da casa, retirado de uma estação de ferro, que lembra o tempo previsível das pessoas, que se deslocam nos movimentos da vida.

Tudo ali nos faz perceber que o jardim é antes de tudo um símbolo que evoca felicidade perdida. É, ao mesmo tempo, uma tentativa para recuperar a felicidade, pois parte desta é o jardim que floresce no interior da alma.  O símbolo pode ser muitas coisas, até um sacramento, sinal presente de uma felicidade ausente. Os símbolos tecem a essência das coisas e do próprio ser humano, verbo encarnado à semelhança do verdadeiro Sacramento.

Mas existem sinais que em vez de nos libertar nos amarram, em vez de nos integrar, nos apartam, como os feudos e os guetos. E por conta deles nos tornamos o intervalo entre os nossos desejos e aquilo que os desejos dos outros fazem de nós, como diz o poeta Fernando Pessoa. Nesse caso, nada melhor que cultivar jardins que sejam verdadeiramente nosso poema interior.

E importante, ainda, que nossos jardins não fiquem apenas no sonho. Jardim sonhado é nostalgia e ausência. É necessário que o corpo seja possuído pelo sonho e se ponha a trabalhar. Aí, sim, o jardim sonhado vai-se tornando um jardim real, e o ser humano vai construindo a felicidade, resultado entre a capacidade de sonhar e de trabalhar.  Só assim, quem sabe um dia, nossos jardins não terminarão em muros, e a cidade dos homens, mais do que nos apartar em feudos e guetos, enfim cultivará jardins para a felicidade de todos.

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