Infringentes




Na medida do possível, procuro aprender com os mais jovens,  absorver um pouco da invejável familiaridade com o mundo virtual dos nativos digitais, conhecer seus gostos e desgostos. Com minha filha caçula, além das aulas de instagram, aprendi a gostar da oitavo andar, de Clarice Falcão. E dos muitos livros que ela tem devorado com adolescente voracidade, um me chamou à atenção pelo título: Divergente, que mostra uma sociedade dividida em cinco facções: Abnegação, Amizade, Audácia, Franqueza e Erudição, vivendo e convivendo em conflito, e fazendo com que as escolhas definam a existência de cada um. O segundo livro da série, explicou-me ela, é Insurgente. O terceiro, disse-lhe eu, brincando, poderia ser Detergente ou, quem sabe até, Infringente, palavra esta tão falada nestes dias, por conta do julgamento dos embargos pelo Supremo Tribunal Federal, que vai fazer os onze Ministros julgarem de novo uma parte das irresignações dos acusados na ação penal apelidada de Mensalão.

Infringente vem do verbo infringir, oriundo do Latim infringo  (arremessar contra, despedaçar), e quer dizer desobedecer. Embargo é aquilo que impede, é um obstáculo. Do substantivo embargo temos o verbo embargar e o seu antônimo desembargar, que significa desembaraçar, de onde vem a palavra Desembargador, apelido pomposo dado a juiz de tribunal.

Embargos infringentes de um julgado são pedras no caminho de julgamento não unânime de um colegiado de juízes, recurso arcaico que se presta a retardar processos judiciais, contribuindo para ferir o princípio constitucional da sua razoável duração. Também não o vejo como instrumento democrático, pois democracia não é unanimidade e, às vezes, unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues.

Dizem os processualistas − não sei se unânimes, ou se desta afirmação cabem infringentes −, que  esses embargos são invenção de português − e aqui não vai nenhum tipo de preconceito contra nossos irmãos lusitanos, mas apenas uma constatação histórica. As Ordenações do Reino, a nós impostas pelos colonizadores, legaram ao nosso sistema processual um recurso instituído em decorrência da desorganização judiciária da Coroa Lusitana, mas que já foram suprimidos do direito português, sobrevivendo somente no Brasil, sem que nossos legisladores cuidassem de extingui-los.

No caso do STF, é irônico que alguns partidos, que hoje criticam a decisão pelo recebimento dos infringentes, tiveram a oportunidade de suprimi-los do regimento daquela Corte, proposta à época do Presidente Fernando Henrique, mas não o fizeram, e agora fazem média − ou mídia − com o reconhecimento de sua existência,  numa decisão aparentemente “técnica”.

Havia bons argumentos a favor e contra o reconhecimento da sobrevida dos infringentes pelo STF. Por outro lado, não há julgamento puramente técnico. Direito é filho da política, das várias forças que se digladiam nos sistemas socioeconômicos, assim como ocorre nas facções do Divergente e, no caso brasileiro, é também filho dos ventos que trouxeram nas caravelas de Cabral o direito do colonizador, que infringiu a paz e a vida dos povos indígenas, o mesmo direito que inventou os infringentes e depois os aboliu.

É certo, ainda, que toga de juiz não é capa de justiceiro, nem há tribunal no mundo que, sozinho, acabe com a corrupção no exercício do poder, do qual nasce o direito. Os infringentes, porém, podem ser suprimidos se nossos mandatários quiserem. Mas talvez nesse ponto muitos daqueles que bradam contra a decisão do STF, na hora de extingui-los legalmente do mapa, por interesses diversos, prefiram ser Divergentes, do mesmo modo que muitos de nós, quando vamos às ruas nos manifestar pelo fim da roubalheira dos cofres públicos, mas continuamos a delegar poder a representantes desonestos, não somos Detergentes, quando o assunto é tentar limpar a sujeira da corrupção nossa de cada dia.

Comentários

  1. Interessante como em nosso país sempre se arruma um jeito para beneficiar pessoas da "elite". Espero que a geração futura, da qual sua filha fará parte, não seja tão acomodada quanto a nossa. Por mais que tenhamos ido às ruas, os resultados estão aquém do que desejávamos. Enquanto isso, vamos com base na lei infringindo a justiça.

    ResponderExcluir

Postar um comentário