Estava no gabinete, absorto em pensamentos e sentenças, quando uma senhora entrou para falar comigo.
-- Por favor, sente-se. O que a senhora
deseja?
-- Doutor, eu sou servidora celetista de uma
Prefeitura e lhe peço que não mande o processo daqui para a Comarca de minha
cidade, pois já tenho mais de sessenta anos e acho que lá a questão vai demorar
muito.
Disse-lhe,
então, que tenho julgado casos de servidores municipais celetistas, mas nosso
Tribunal, com base em entendimento do Supremo, tem mandado os processos para a
Comarca. Ela me agradeceu, saiu do gabinete, mas aquela súplica não saiu junto
com ela.
Nosso
Egrégio TRT anulou várias sentenças nossas, de casos semelhantes ao daquela
senhora, com o fundamento de que, em recentes julgados, o STF firmou entendimento
que não compete à Justiça do Trabalho apreciar qualquer tipo de relação de
servidor com a Administração Pública, a partir de decisão proferida na Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3395.
Conheço
aquela decisão e tenho de respeitá-la. Isso não quer dizer, porém, que concorde
com ela, e mesmo sendo decisão da Suprema Corte, não devemos tratá-la como
dogma, dizendo “Roma locuta, causa finita est” – Roma falou, a causa está
encerrada --, até porque não estamos
falando de infalibilidade papal. Esta, por sinal, limita-se a verdades
doutrinárias de fé e costumes pronunciadas “ex cathedra”. Daí que nem toda
palavra que sai da boca de Roma é dogma, e não custa lembrar que dogma não é
tabu, coisa proibida de ser tocada sob pena de fazer desabar do céu a ira
divina sobre quem falar no assunto.
Pelo
entendimento firmado no STF, foi excluída a competência da Justiça do Trabalho
para julgar ações entre Poder Público e seus servidores, vinculados por relação
estatutária ou de caráter jurídico-administrativo. A interpretação que se deu
foi que quando a Constituição Federal, no art. 114, I, fala em “relação de
trabalho”, devemos entender que se trata de “relação de emprego”, exegese com a
qual não concordo, mas tenho de obedecer, e por isso nem cogito julgar ação de
servidor público que não seja regido pela CLT.
Obediência,
porém, até no âmbito religioso, não deve ser cega e, no caso de entendimento
jurisprudencial, este pode um dia ser mudado, a menos que o tratemos como tabu.
Alguém imaginava, há alguns anos atrás, que nossa Suprema Corte um dia iria
autorizar uniões homoafetivas, e que os cartórios fossem obrigados a
registrá-las por simples resolução do CNJ, sem precisar mudar uma letra na lei?
Miguel Reale, pai do Código Civil, morreu crente de que isso só seria possível
com uma mudança no texto constitucional. E sobre a competência da Justiça do
Trabalho? Alguém supunha que um dia o STF editasse Súmula Vinculante,
determinando nossa competência para julgar ações de indenização por acidente de
trabalho, quando até 2004, o entendimento predominante era pela competência da
Justiça Comum?
O
Estado brasileiro criou uma Justiça do Trabalho – não só do emprego -- dotou-a
de excelente estrutura e de instrumentos avançados, como o processo eletrônico,
que têm permitido incrível celeridade na resolução dos conflitos, como é o caso
da Justiça do Trabalho na Paraíba. Objetivando estar sempre perto da população,
foram instaladas Varas Trabalhistas não só na capital e Campina Grande, mas nas
diversas regiões do Estado. Algumas delas, de uns tempos para cá, têm sofrido
redução no volume de ações, principalmente em decorrência do entendimento
jurisprudencial da Suprema Corte em relação à nossa competência. Enviamos uma
enormidade de processos para nossos colegas da Justiça Estadual, quando sabemos
que muitos deles já estão sobrecarregados de processos para dar conta, e talvez
por isso não possam atender às ações trabalhistas com a celeridade que
desejariam. Enquanto isso, instados por
estatísticas norteadas pela visão do custo-benefício, somos induzidos a reduzir
nossa presença em algumas regiões do nosso Estado, o que parece insensatez.
Não
se trata aqui de querer valorizar mais o Juiz do Trabalho, tampouco fazer
comparações entre nós, como ouvi na seguinte anedota sobre tipos de juízes.
Dois amigos estavam conversando, quando um deles falou:
-- Juiz de verdade é o da Comarca, pois ele é
quem manda na cidade. Ele é como o árbitro de futebol, que manda no jogo. Juiz
Federal é como o bandeirinha, é árbitro, mas é auxiliar.
-- E o do Trabalho? Perguntou o outro.
-- Bem, ele é como o gandula.
No que o amigo retrucou:
-- Pelo menos ninguém fala mal da mãe do
gandula.
Na verdade, valendo-me da analogia
futebolística, a mãe do árbitro, do bandeirinha e do gandula é, em última
instância, a Nação Brasileira, de onde vem o poder para fazer a Constituição e
as leis, e o poder que nos é dado para julgar. E para que nós, Juízes de
Direito, possamos atender melhor a essa mãe, é importante uma adequada divisão
do nosso trabalho social. Só assim poderemos atender melhor ao apelo de muitas
pessoas, como aquela senhora que me procurou no gabinete, pois para ela não
interessa fazer discriminação entre juízes, e seu apelo poderá até ser melhor
atendido na Comarca de sua cidade, se o Estado brasileiro permitir a ela e a
todos que batem às portas do Judiciário a real possibilidade de receber o que
lhe é de direito num tempo razoável e ainda em vida.
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