Um brado retumbante



Como protestar agora está na moda, vou começar resmungando contra mim mesmo. Até que me acho um cara consciente, mas será que minhas paixões entorpecem meu juízo? Veja só. Como torço por time de futebol, às vezes me deixo imbecilizar. Vez por outra perco meu sono para ver um jogo na TV, que poderia começar bem mais cedo, mas só termina às altas horas por conta dos interesses econômicos da emissora, que só deixa o árbitro dar o apito inicial depois que termina a lenga-lenga da novela. Gasto mais energias, elétrica, corporal e emocional, enquanto alguns craques da chuteira e  técnicos chamados de professores – que tratam os alunos aos palavrões sem que isso seja bullying --, enriquecem às custas da paixão de gente como eu, que não apenas assiste jogos, mas consome mercadorias ligadas a essa paixão. Isso sem falar nas empresas, empresários e cartolas, que ganham muito mais explorando o milionário mercado do futebol. O dinheiro ganho parece tanto, que dá até para pagar uma dinheirama a narradores e comentaristas, muitos deles para falar bobagens e atiçar um ufanismo imbecilizador.

A essa altura, alguém pode me retrucar: ora, o que você tem a ver com isso? Se essa gente ganha muito dinheiro é porque são pessoas geniais e merecem ganhar o que ganham. Pode ser. Mas por que então, alguns professores geniais, cientistas geniais, médicos geniais, atletas olímpicos geniais, não têm o mesmo merecimento? Você também pode dizer que quem paga a eles é a iniciativa privada, e não o poder público. Nesse caso, o problema não seria nosso. Mas se todas as riquezas públicas e privadas são limitadas, o que transborda dos bolsos de uns pode ser o que falta na mesa de muitos.

Faço essas reflexões, instigado pelo eco das manifestações de protesto que ocorrem em todo país, imaginando que as vozes das ruas nos ajudem a dar novos rumos ao Brasil. Que nós, do Judiciário, julguemos com a celeridade e a justiça que o povo exige e merece. Que os governos possam dar a mesma prioridade dada à construção das arenas de futebol, para a saúde, educação, segurança pública e mobilidade urbana. Que os legisladores votem sempre em primeiro lugar os projetos de lei de interesse do povo. Existe, por exemplo, um projeto para que o trabalhador não pague imposto de renda sobre o décimo terceiro salário. Há quem diga que sua aprovação pode prejudicar os cofres públicos. Mas um acréscimo salarial no fim do ano significa mais dinheiro circulando para comprar comida, roupa, sapato, bens cujo consumo gera mais riqueza e impostos.

Daí que a questão crucial, a meu ver, não é se voltar contra os gastos com a construção de belas arenas de futebol para as copas em nosso país. Mas, como dizem alguns cartazes de manifestantes,  lutar para que possamos ter não apenas estádios, mas hospitais, escolas e transportes públicos padrões “FIFA”; salários de médicos, professores, policiais, juízes, garis, enfim, de todos os trabalhadores, dignos de salários de primeiro mundo, e não ficarmos apenas entorpecidos pelas nossas paixões, a idolatrar e enriquecer alguns poucos, que mesmo se merecem fama e riqueza pela genialidade, estão a serviço de outros, que exploram a paixão do povo, com sua sagacidade.

Claro que isso não pode ser feito do dia para a noite, nem depende unicamente dos governos. Mas medidas urgentes precisam ser tomadas. Não se deve abusar da paciência do povo, com o argumento de que dias melhores só virão quando e se houver um exponencial crescimento econômico. Estamos cansados de saber que não somos um país pobre, afinal somos uma das maiores economias do mundo. Somos, sim, um país ainda muito desigual. Portanto, o problema não é de economia, mas de justiça.

Que minha paixão pelo futebol não me torne parte daquilo que Olavo de Carvalho chama de “imbecil coletivo”, nem  um “deficiente cívico”, de que fala Milton Santos, e que as vozes das ruas sejam para todos nós um brado retumbante de esperança.

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