E se fosse um berimbau.

A notícia chegou aos ouvidos do Ministro do Esporte, quando ele estava tratando com empresários num resort. Num jogo de futebol, torcedores se rebelaram sacudindo caxirolas no gramado. Sem demonstrar muita preocupação, o ministro declarou à imprensa que, apesar da notícia não ser boa, isso não significa que o fato vá se repetir na Copa do Mundo em nosso país.
            
A ideia dos marqueteiros do Mundial de Futebol – que batizaram o coitado do tatu-bola de Fuleco (mais engraçado seria Fulustreco) --, é que a tal caxirola, sucessora da irritante vuvuzela, seja o som nativo a se fazer ouvir em nossos estádios durante o evento. O dito instrumento foi apresentado com pompas oficiais como se fosse invenção de um músico atual. No entanto, há quem afirme, com base em pesquisas confiáveis, que ele não passa de um plágio do antigo caxixi.
            
O caxixi, chocalho de palha trançada contendo sementes secas, era utilizado na África em rituais religiosos, para invocar espíritos protetores e suas energias vitais. Chegando ao Brasil, tornou-se parceiro inseparável do berimbau, este último imortalizado em nosso cancioneiro:

“Quem é homem de bem não trai o amor que lhe quer seu bem...
Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém...
O dinheiro de quem não dá é o trabalho de quem não tem...
Capoeira me mandou dizer que já chegou, chegou para lutar.
Berimbau me confirmou, vai ter briga de amor, tristeza camará...”

            
Como se percebe pelos versos do “poetinha”, o berimbau é elemento essencial não só para acompanhar a dança/luta acrobática da capoeira, mas para ritmar o pulsar da vida e dos amores dos capoeiras. Estes, em outros tempos, vistos como rebeldes ou marginais, eram impedidos de jogar futebol, esporte de grã-fino, introduzido em nossas terras em 1894, quando Charles Miller aqui desembarcou com duas bolas de couro na bagagem.
            
Daqueles tempos para cá muita coisa mudou em nosso futebol. De jogo de elite, proibido aos pobres e negros, que só viam os jogos arriscando-se a espiar por cima do muro, passou a ser incentivado pelas autoridades como esporte de massas, para evitar que a plebe se rebelasse nas greves, em grupos de capoeiras e outros movimentos sociais. De esporte inglês, praticado pelos “gentlemen”, em que as desculpas eram pedidas na base do “I’m sorry”, tornou-se ambiente do palavrão não interdito e triunfou como paixão nacional.
           
A paixão, todavia, cega a razão, como diz o provérbio -- quem sabe por fazer produzir no organismo uma overdose de endorfina, que atiça áreas cerebrais do prazer e esmorece as do senso crítico --, fazendo do apaixonado presa fácil de quem consegue manipular o objeto da paixão, a exemplo do futebol. Lima Barreto, já no princípio do século XX, percebeu que as oligarquias podiam fazer daquele esporte um “ópio do povo”. E ainda hoje, se não acendermos a luz vermelha do senso crítico, para amenizar os efeitos dos entorpecentes naturais provocados em nosso cérebro por essa paixão, ela pode alimentar vários tipos de desmandos e engodos, a pretexto da realização do maior evento futebolístico em nosso país.

Quantos bilhões de reais vão ser gastos do nosso dinheiro para construção dos estádios, apelidados de arenas, com orçamentos muito superiores aos previstos, para depois serem entregues à exploração da iniciativa privada, que se nutre e engorda com lucro em cima de lucro? Qual a razão de não faltar dinheiro para as construções feitas a toque de caixa, enquanto saúde e educação vivem à míngua? Nesse caso, juristas do meu Brasil, para onde vai a tal “reserva do possível”? Quantos desses estádios se tornarão elefantes brancos? E nossa soberania, princípio primeiro de nossa República, onde ela deve se esconder, constitucionalistas do meu país, quando o nosso Estado se ajoelha diante da FIFA, tornando letra morta algumas de nossas leis, para atender as exigências daquela entidade? As promessas de construção de obras de infraestrutura, para melhoria de nossas cidades, no entorno ou além dos arredores dos estádios, serão realmente cumpridas? Faremos espetáculos acessíveis ao nosso povo ou que caberão apenas nos bolsos dos abastados?
            
Como apaixonado que também sou pelo futebol, talvez fosse melhor não levantar essas questões, e apenas suscitar meu ufanismo para torcer pela conquista de mais um título do milionário time canarinho, até porque, em caso de derrota – toc, toc, toc na madeira... nem quero pensar nisso -, poderá chover caxirola nos gramados. E imaginem se os marqueteiros tivessem escolhido o berimbau...

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