Não é de
hoje que o carnaval representa uma celebração do mundo às avessas. Homem se
torna mulher, plebeu tem seu dia de nobre e súdito brinca como rei. Como lembra
Bakhtin, desde a Idade Média, os festejos carnavalescos criavam, ainda que
temporariamente, uma realidade totalmente diferente e não oficial, construindo
uma espécie de dualidade do mundo, sem a qual não se pode compreender nossa
consciência cultural.
Sobre
o carnaval, Dom Hélder Câmara disse certa vez que se tratava de uma das poucas
alegrias que sobrava para os pobres, e que não sabia se Diante de Deus, pesava
mais os excessos cometidos por foliões ou o farisaísmo e a falta de caridade de
quem se achava melhor e mais santo do que os outros, por não brincar o
carnaval.
O
carnaval também é tempo propício para a sátira política. Neste ano, em
Brasília, um bloco animou os foliões com o seguinte refrão: “Guido Manteiga,
que decepção! O seu Pibinho não dá nem pro mensalão”, o que inspirou uma charge
em que o Ministro da Fazenda aparece, de camisa listrada, tocando um minúsculo
pandeiro, o PIB, ao lado de uma mulata, cuja parte mais exuberante do corpo é o
mensalão.
Convidado
a um mergulho interior pelas cinzas da Quaresma, aquela sátira carnavalesca me
faz pensar sobre questões importantes para o nosso País. Quando deixaremos ser
só País do carnaval e do futebol para sermos um País de cidadania plena? Jogar
todas as fichas no pré-sal não é tentar iludir os outros (ou nos iludir) com
promessa de que o Pibinho de repente vai virar
Pibão? Quanto tempo teremos de
esperar o bolo crescer para dividir
melhor as fatias? Quantos carnavais e Quaresmas serão necessários para que
trabalhadores tenham um salário mínimo constitucional, sem dependerem do
assistencialismo demagógico-eleitoreiro?
Há
mais de dez anos, montei um texto com fragmentos de outros, e a intenção é que
ele funcionasse como uma espécie de sátira, uma charge de palavras. Peço
licença para reproduzi-lo, em parte e abaixo,
enquanto não consigo responder todas as questões acima :
PRÓLOGO
NO TEATRO
Toque
de clarim.
O
ENGRAVATADO (cerimonioso)
Proclama
a Magna Carta: é direito de todo trabalhador um salário mínimo capaz de atender
a suas necessidades vitais básicas e de sua família, com moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
(Risos. Mas contidos, data vênia)
O
PARAMENTADO (voz contundente)
Exorta
a Escritura Sagrada (Dt 24,14-15) : Não oprimirás um assalariado pobre,
necessitado, seja ele um dos teus irmãos ou um estrangeiro que mora em tua
terra, em tua cidade. Pagar-lhe-ás o salário a cada dia, antes que o sol se
ponha, porque ele é pobre e disso depende a sua vida. Deste modo, ele não
clamará a Iahweh contra ti, e em ti não haverá pecado.
Soam
os clarins do carnaval.
O
ESFARRAPADO (ligeiramente ébrio, canta a antiga música de carnaval, de Ary
Barroso e Benedito Lacerda):
Trabalho
como um louco
Mas
ganho muito pouco
Por
isso eu vivo
Sempre
atrapalhado
Fazendo
faxina
Comendo
no china
Tá
faltando um zero
No
meu ordenado.
Tá
faltando um zero
No
meu ordenado
Tá
faltando sola
No
meu sapato
Somente
o retrato
Da
rainha do meu samba
É
que me consola
Nesta
corda bamba.
(E
todos acabam no samba).
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