Com açúcar?





            Enquanto a diarista faz seu ofício, uma voz melíflua sai do rádio e se derrama pela casa:
-        Bom dia, minha filha. Como vai você?
            Telefonema no ar, uma voz feminina indaga ao apresentador do programa:
-        Bom dia, padre. Meu problema é que meu companheiro me maltratava muito. Faz algum tempo que a gente se separou e meu sonho é arranjar outro homem, mas que seja um homem de Deus. Será que o senhor pode me ajudar?
-        Bem, minha filha, reze comigo. Quem sabe Deus lhe manda esse homem para realizar o seu sonho...
            E a diarista continua a trabalhar, embalada pela voz cheia de mel, à espera da benção de um copo d'água, que repousa estrategicamente ao lado do rádio.
            Um programa desse tipo é apenas uma expressão de diversos fenômenos religiosos “pós-modernos”. Certamente ele faz bem a pessoas carentes de atenção e ajuda, mesmo que seja na busca de resolver problemas típicos de quem procura solução para problemas individuais, quer junto a uma igreja, quer perante uma cartomante ou um consultor sentimental. Mas se por um lado, um programa de um sacerdote de voz impostada e fala macia,  – que chega a lembrar a de  Barros de Alencar na impagável Prometemos não chorar –,  ajuda pessoas carentes, por outro, temos escassez de vozes proféticas não tão macias, para denunciar a exploração política, econômica e social, que causa carências mais graves, o que é um desafio para a vida cristã em nossas sociedades complexas.
            O Padre José Comblin, no livro Quais os desafios dos temas teológicos atuais?, suscita muitas questões relacionadas ao fenômeno religioso nos dias de hoje. Mostra que no mundo ocidental “pós-moderno” a busca pelo bem-estar individual substitui as lutas pelas causas sociais.  Assim como Margareth Thatcher dizia que a sociedade não existe, somente existem indivíduos, a economia, a filosofia e as ideologias tendem a abandonar as questões sociais, desviando a atenção para os problemas individuais, campo propício para a disseminação da teologia da prosperidade. Esta assegura que Deus faz prosperar todos os que “aderem ao sistema”, e se “Deus resolve todos os problemas individuais, por conseguinte, não há mais problemas sociais.”
            Além do mais, sendo o cristianismo a religião hegemônica na maior potência mundial,  e tendo esta  utilizado o marketing em diversas áreas, para produzir sua hegemonia global, não seria o marketing religioso mais um instrumento para atrair almas mundo afora,  propagandeando credos fundados na teologia da prosperidade? Mas um cristianismo eminentemente de mídia e de marketing, que se ajoelha diante do sistema que o patrocina e comanda, tem algo a ver com a essência do evangelho de Jesus Cristo?
            A partir desses e de outros questionamentos, a fala profética de Comblin nos incita a refletir sobre desafios teológicos atuais: a pá de cal jogada por documentos da Igreja na “opção preferencial pelos pobres”; estudantes carentes de bandeiras de luta, lançando-se freneticamente no competitivo mercado de trabalho, e tendo como “sonho de consumo”  tão-somente conquistar um  lugar ao sol da sociedade individualista; o diálogo inter-religioso, indispensável na era do pluralismo, que não consegue vencer os resquícios da arraigada e dogmatizada arrogância da hierarquia triunfante na cristandade; uma cristologia voltada mais para o culto do que para o seguimento a Jesus Cristo.
            Não é de estranhar que nesse contexto não se fale mais em comunidades eclesiais de base, que classes populares procurem na multiplicidade de igrejas, soluções instantâneas para a falta de emprego, de saúde, de direito e dignidade, e parte da classe média prefira o devocionismo intimista que não denuncia corrupção política, exploração econômica ou  desigualdade social, o que me lembra uma experiência que tive como juiz no sertão paraibano. Uma senhora distinta, assídua participante de um grupo de oração, sentiu-se incomodada e me questionou por que eu, como católico, não ostentava um crucifixo em meu gabinete. No entanto, ela não sentia o mínimo rebate de consciência por não pagar horas extras  e direitos trabalhistas básicos à dignidade de seus empregados, explorando-os como se fossem seus servos ou escravos.
            Como pondera o Padre Comblin, essa tendência religiosa, em que o pecado social desaparece e as pessoas mostram-se mais interessadas no seu próprio bem-estar espiritual, pode ser uma reação contra o secular pessimismo cristão, que pintava o mundo como vale de lágrimas e espalhava o medo da condenação pelo pecado. Todavia, como também lembra aquele teólogo, se não há pecado não faz sentido a redenção e, por conseguinte, o Redentor. Jesus poderá ser visto até como um guru, um mestre de autoajuda, que dá lições de felicidade, mas não passará disso, o que pode tornar o cristianismo uma religião de marketing. Este “exige o sorriso perpétuo, a alegria da vida, o otimismo quanto ao futuro, a satisfação de todos os desejos. Uma religião desse porte seria um esvaziamento do cristianismo. Poderá fazer sucesso, mas um sucesso sem valor”.
            Se é assim, a saída não está nem no pessimismo lacrimoso de outrora, nem no otimismo ilusório dos novos tempos. Pois “o pecado não destruiu tudo o que há de bom neste mundo, porém provoca sofrimentos que não se pode esconder”. Ou será que o mundo moldado pela sociedade consumista é tão perfeito que não haja mais injustiças que as vozes proféticas tenham de denunciar? Será que o caminho mais correto é atrair e ajudar a todos – aos que sofrem e aos que causam o sofrimento –,  apenas com palavras açucaradas? Pode ser. Mas também é bom lembrar que se o doce do mel é bom, quando é demais enfara, e overdose de açúcar faz mal à saúde.

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