“Que me beije com beijos de sua boca!
Teus
amores são melhores do que o vinho...
(…)
Teus
lábios são fita vermelha,
tua
fala melodiosa;
metade
de romã são teus seios
mergulhados
sob o véu...”
Não,
esses versos não foram extraídos dos Cinquenta tons de cinza, o
best-seller “pornô das mamães”, que não
cheguei a ler. Eles podem ser lidos no Cântico dos Cânticos, livro sapiencial
bíblico, que nos leva a refletir sobre sexualidade e afetividade, aspectos
vitais da condição humana.
Sexualidade,
segundo a Organização Mundial de Saúde, é energia que nos motiva a procurar
amor, contato, ternura e intimidade. Ela se integra no modo como nos sentimos,
movemos tocamos e somos tocados; influencia pensamentos, sentimentos e
interações, constituindo-se num fator importante para a nossa saúde física e
mental. Já a afetividade tem a ver com vivência do afeto, uma das funções de
nossa mente, que não se limita a conhecer e decidir, mas também leva cada um a
sair do seu próprio “eu”, para se ligar ao outro por um laço de amor.
A
imagem do laço como sinal de relações afetivas é apresentada no poema de Mário
Quintana, que fala do laço e do abraço. O laço, uma fita dando voltas que se
enrosca, “mas não se embola, vira, revira, circula e pronto: está dado o laço.”
E o abraço, “coração com coração, tudo isso cercado de braço”. Por isso, lembra
o poema, falamos em laço (e não em nó) afetivo ou de amizade. Pois amor e
amizade são isso: “não prendem, não escravizam, não sufocam. Porque quando vira
nó, já deixou de ser um laço”.
Se
não escravizam nem sufocam, os laços afetivos não devem ser sinais de
dominação, submissão ou exploração do outro. Daí que no Cântico dos Cânticos,
as imagens do amor e da sexualidade não são marcadas por sadismo ou masoquismo,
e sim por um sadio realismo, pelo cantar do amor também corpóreo, com o prazer
e o êxtase a ele inerentes.
Mas
o que faz uma coleção de poemas de amor em meio a escritos sapienciais de um
livro santo? Que tem a ver exaltação de laços conjugais, da beleza do corpo da
pessoa amada, com a Palavra salvífica de Deus?
Desde
tempos remotos, existem interpretações espiritualizantes desses poemas. Era
comum entre antigos judeus a comparação entre a relação dos amantes neles
apresentados, com o amor de Javé por
Israel, do mesmo modo que depois os cristãos fizeram a alegoria com as núpcias
entre Cristo e a Igreja. Mas isso não elimina a exegese mais literal, que
enxerga, nas imagens dos poemas, expressões legítimas do amor conjugal, do qual
fazem parte a sexualidade e a afetividade humanas, que também são tons do
infinito amor de Deus.
Nessa
perspectiva, demonizar a sexualidade humana é negar-lhe a origem divina,
postura que está a anos-luz do que orienta a ética cristã, na qual sexualidade
rima com castidade, não no sentido de abstinência de prazer corpóreo, mas de
sexualidade vivida no amor. Este, como o laço do poeta Quintana, não pode ser
um nó que nos escraviza ou sufoca, mas, como um dos tons do infinito amor de
Deus, deve ser a livre entrega do nosso coração.
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