Nossos jardins


Meu pai gostava de plantar árvores. Quando era diretor de colégio, enquanto nós cuidávamos da rotina administrativa, ele preferia cultivar o jardim da escola.  E como professor de História, seus olhos brilhavam quando ele falava sobre os jardins suspensos da Babilônia, mais do que maravilha arquitetônica do mundo antigo, um presente do rei para a amada, que tinha saudade das montanhas de sua terra.

Não somente na história de reis e rainhas, jardins são vistos como ambientes onde se pode encontrar paz e harmonia, diferente das florestas, muitas vezes apresentadas como lugares que infundem medo e terror, não sendo por  acaso que  aqueles tivessem lugar de destaque em diversas tradições antigas. Na aridez egípcia, jardins eram verdadeiros oásis, construídos em terrenos irrigados, com árvores sombreiras e flores olentes; na Mesopotâmia, agradáveis recantos de árvores frutíferas, enquanto na cultura chinesa e japonesa, tinham grande significado espiritual e filosófico.

Seu simbolismo filosófico é  marca registrada da escola de Epicuro. Com este, a filosofia – que vagava nas ruas nos tempos de Sócrates, mudando-se depois para a Academia  de Platão e para o Liceu de Aristóteles –, passou a habitar um jardim. O silêncio do horto, que parecia não falar muito aos ouvidos das filosofias clássicas, tocava os sentimentos daqueles que se diziam “os do Jardim”, para quem a realidade podia ser conhecida pela razão e a felicidade não dependia da cidade nem dos deuses, mas da capacidade humana de viver  prazeres verdadeiros.

O ideal de gozar prazeres genuínos não é exclusivo de filosofias materialistas ou hedonistas, mas integra o pensamento religioso, particularmente quando se busca o paraíso perdido, cujo símbolo é o jardim. No relato bíblico da criação, lemos que Iahweh plantou um jardim em Éden, onde passeava à brisa do dia e onde colocou o homem, que havia modelado com argila do solo, e a mulher, plasmada do corpo do homem. Ali, o Criador fez crescer toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e entregou o Éden para os os jardineiros humanos guardar, cultivar e dele desfrutar, correta e prazerosamente.  Todavia, a desobediência do homem e da mulher fez com que estes fossem desterrados do jardim das delícias, que passou a ter como guardiães os querubins e a espada flamejante.

Além do relato do Éden, outras passagens das Escrituras fazem menção a jardins. No Cantares, a amada é comparada a um jardim fechado, imagem comum ao tema da “bela jardineira”, da poesia egípcia. Isaías, por sua vez, profetiza que as estepes de Israel serão transformadas num jardim de Iahweh. Já no Novo Testamento,  temos o Getsêmani, no Monte das Oliveiras, um dos refúgios favoritos de Jesus, onde Ele podia rezar e ter privacidade com os amigos, mas que foi cenário de angústia, de suar sangue e do beijo da traição ao Filho de Deus que, depois de crucificado, teve o corpo sepultado no interior de um jardim perto do Gólgota.

O Criador do Éden, que me concedeu um pai que plantava árvores, também me deu uma esposa apaixonada por jardins. O da nossa casa, por ela projetado e cultivado, abriga espécimes muito bonitas, que eu chamo simplesmente de plantas e flores, mas que ela trata pelo nome certo e cuida com carinho de cada uma delas. Às vezes, conversamos sobre como seria bom se um dia pudéssemos viver num lugar em que as casas não tivessem muros, e todos nós, mutuamente, aproveitássemos da beleza dos jardins, o que parece um sonho distante.

Mesmo que esse dia não chegue, é importante cuidar dos nossos jardins, sejam os de árvores e flores, sejam os de valores e sentimentos cultivados no coração. O jardim, como ensina Rubem Alves, se por um lado é símbolo da felicidade perdida, por outro é busca de reaver essa felicidade, e parte desta depende do que podemos fazer florescer no interior da alma. Se somos  faíscas do amor de Deus, é possível cultivar em nosso íntimo um jardim que se torne presença da felicidade ausente.

Mais do que cultivar o jardim da alma, como nostalgia do paraíso perdido, é necessário que nossos corpos,  mentes e espíritos, movidos pelo sonho, ponham-se em movimento para transformar o mundo. Como timoneiros do nosso destino, poderemos construir a felicidade, entrelaçando os fios da capacidade de sonhar com os da capacidade de trabalhar. É importante, ainda, que nossos jardins não terminem nos muros. Aliás, é essencial implodirmos os muros interiores e exteriores, muros da indiferença, do preconceito, da injustiça, das desigualdades sociais, enfim, de todos os males que nos impedem de construir coletivamente um mundo mais próximo do jardim que deixamos para trás, guardado por querubins e pela espada flamejante. Nada disso, porém,  nos proíbe de sonhar com o paraíso governado pelo Deus-Amor que plantou o Éden, de querer viver eternamente na casa do Pai, com suas muitas moradas, onde há de ter muitos jardins.

Comentários

  1. Belo texto!

    Curiosamente, os jardins também são lugares para experiências. E estas podem ser bem enriquecedoras se forem feitas em harmonia com a Vida, o que significa estar de acordo com os princípios e vontade do nosso Criador bendito.

    Considero a expulsão de Adam do Éden não necessariamente como um castigo e sim como uma nova oportunidade para que o homem, "trabalhando com o suor do seu rosto", possa reconstruir o Paraíso a partir da realidade em que se encontra. Estaria aí o que escreveu sobre o entrelaçamento dos "fios da capacidade de sonhar com os da capacidade de trabalhar"

    Neste mundo cheio de desamor, violência, egoísmo, corrupção, filhos rebeldes, relacionamentos conjugais vazios e deprezo pela condição humana, plantar "jardins" é um ato bem significativo para mudarmos essa paisagem ainda tão desértica.

    Vale a pena cultivar jardins!

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