Comparar anencéfalo a natimorto é coisa de mentecapto?




O Supremo Tribunal Federal, mais uma vez, bateu o martelo: é inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gravidez de anencéfalo é crime de aborto. Justificando esse entendimento, o Ministro Relator abre seu voto citando o Padre Antonio Vieira: “E como o tempo não tem, nem pode ter consistência alguma, e todas as coisas desde o seu princípio nasceram juntas com o tempo, por isso nem ele, nem elas podem parar um momento, mas com perpétuo moto e resolução insuperável, passar e ir passando sempre.”

Depois o Ministro delimita a questão:  considerar crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo é compatível com os preceitos constitucionais que garantem um Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, a proteção à liberdade, privacidade e saúde? A resposta do Ministro é negativa, e ele passa a justificar o seu não.

Começa falando sobre nossa República como Estado laico. Não somos mais guiados por uma Constituição como a primeira que tivemos, que obrigava o Imperador ao juramento de manter a religião católica e também lhe dava o poder e a incumbência de nomear bispos e prover benefícios eclesiásticos. Já no governo provisório dos Marechais que engendraram nossa República,  foi desfeito o casamento entre Igreja e Estado. Este passou a ser laico (nem religioso, nem ateu), garantidor  de direitos de crentes e não crentes, não permitindo que qualquer religião possa ditar o tratamento a ser dado pelo Estado a direitos fundamentais de todos.

A partir dessa premissa, coloca-se a questão do anencéfalo. Este, de acordo com conclusões científicas, teria a mesma condição de um morto cerebral, apenas com batimento cardíaco e respiração. O anencéfalo, diferente de um feto com deficiência grave, que tem possibilidade de vida extrauterina, seria um natimorto neurológico, o que afastaria a comparação entre a interrupção da gravidez de anencéfalo e o aborto eugênico praticado por nazistas. A condição do natimorto neurológico seria tão peculiar que quando a mãe resolve levar a gravidez até o fim, nada é feito para manter o batimento cardíaco e a respiração do anencéfalo, nenhuma manobra de reanimação, nenhum procedimento de suporte vital, espera-se apenas sua morte cardiorrespiratória.
 
Se é assim, seria justo o direito de um Estado laico considerar criminosa a mãe que resolve interromper a gravidez de anencéfalo? Ela deve ser obrigada a manter a gravidez até o fim, sabendo que o Estado e a medicina nada podem fazer para manter a vida cardiorrespiratória do filho, cabendo a ela apenas esperar mais um tempo para enterrá-lo?

O posicionamento do Supremo Tribunal, de que não é crime de aborto, mas conduta atípica, a interrupção da gravidez de anencéfalo, também se valeu  do argumento de que, nesse caso, não existe colisão real entre direitos fundamentais da mulher e do feto, mas apenas conflito aparente, pois apesar de ter batimento cardíaco e respiração, o anencéfalo é natimorto neurológico, e não se pode matar quem já está morto. Além disso, a mulher, mesmo tendo a permissão do Estado laico, não está obrigada a interromper a gravidez se isso for contra sua convicção religiosa, que fica também resguardada.

A batida do martelo, mesmo que seja o do Supremo, não coloca um ponto final em muitas questões relacionadas ao tema. Tratar o anencéfalo como natimorto neurológico não seria tratá-lo como objeto descartável? Se a morte de todos é certa, a certeza prévia da morte cardiorrespiratória do anencéfalo lhe retira o direito a esse tipo de vida, nem que seja por alguns minutos a mais? A permissão de interromper a gravidez de anencéfalo abre brechas  para ampliar hipóteses de aborto legal? Sendo assim, comparar anencéfalo a natimorto não seria coisa de mentecapto?

Entre tantas questões que podem ser suscitadas, algumas decorrem da falta de uniformidade no critério jurídico para aquisição da personalidade, com o nascimento, e a perda, com a morte.  Segundo nosso Código Civil, para o ser humano se tornar pessoa basta nascer com vida, fato atestado pela respiração. Se o recém-nascido respira e logo morre, adquire personalidade e direitos dela decorrentes, podendo herdar e transmitir seus bens em decorrência de sua morte. No caso do anencéfalo, uma mãe pode querer levar a gravidez até o fim tanto por convicção religiosa,  quanto por interesse econômico. Nesse caso, deve o Estado negar ao anencéfalo o direito de adquirir personalidade, e à mãe, de ficar com parte dos bens do pai rico de um anencéfalo? Já na outra ponta da vida, o direito adota o critério da morte cerebral. Se o anencéfalo não for considerado natimorto, também não deveria ser crime contra a vida a retirada de órgãos para doação, de alguém que o direito diz não estar vivo, com base no critério da morte cerebral? Mas isso não seria um retrocesso, até no âmbito religioso, pois muitas religiões aceitam esse critério de morte e  incentivam a doação de órgãos do morto cerebral como ato de caridade da família?

Todas essas questões revelam a complexidade do tema. Não basta dizer isto é crime, aquilo não é;  este é a favor da vida, aquele é contra. O próprio direito à vida não é absoluto, nem para o direito, nem para a religião. O Código Penal dispõe que não se pune o aborto praticado por médico se não houver outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultar de estupro. Mas para resguardar a vida acima de qualquer outro bem, inclusive a honra e a saúde psíquica da mulher, não deveria o direito obrigar a estuprada a ter o filho do estuprador? E se for feito o aborto, mesmo legal, o médico e a mãe são mais infames que o estuprador?

Nossa Igreja Católica, em outros tempos, mandava crianças que morriam “pagãs” para o limbo e condenava previamente o suicida, não permitindo seu enterro em campo santo. Novos tempos trouxeram mudanças nesses conceitos. Mas até hoje o catecismo admite pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto. Isso, porém, não é uma contradição para defensores da vida? A propósito, nosso Estado laico não admite pena de morte com tal amplitude, mas apenas em caso de guerra declarada. Nesse caso, uma norma estaria certa e outra errada? Observar uma ou outra implicaria estar em pecado?

Que os novos tempos nos tragam sabedoria para pensar e agir em relação a questões tão complexas, já que, como pregou o Padre Vieira, não temos como fugir das mudanças das coisas que nasceram juntas com o tempo, coisas e tempo que não podem parar um momento, e que nos levam, no insuperável passar, a também ir passando sempre.
                                                                                             

Comentários

  1. Antônio, você, como sempre, trazendo reflexões profundas. Eu gostei da decisão do STF, mas reconheço que não é fácil decidir sobre isso.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Alexandre. Também achei a decisão muito boa, embora a gente saiba que ela não representa um ponto final numa questão tão complexa.

    ResponderExcluir

Postar um comentário