Semana Santa, feriadão e folclore.


Uma esmolinha pra minha mãe “jijuar” no dia “d'hoje”. Nos meus tempos de menino, ouvia esta frase, repetida quase como uma cantiga, por crianças que pediam esmola na Semana Santa. Meus pais, donos de uma barraca no mercado, costumavam dar a elas produtos alimentícios, inclusive bacalhau, que era comida de pobre. Quando acabava o que era reservado para as esmolas, a resposta dada era outro bordão: perdoe, que eu não tenho agora. Mas uma coisa já naquele tempo me intrigava: se aquela gente tinha pouco para comer durante o ano todo, por que, na Semana Santa, pedia esmola para jejuar? E por que muitos, que não faziam isso durante o resto do ano, apenas naqueles dias mendigavam tão efusivos, que pareciam garotos americanos pedindo doce, de porta em porta, no tempo do Halloween?

Na Sexta Feira da Paixão, impressionava-me o pesar que se abatia sobre a multidão, principalmente na procissão, seguida do beija-pé na imagem do Senhor Morto, atmosfera de luto e tristeza, que muitos anos mais tarde afetou minha filha pequena. Vendo o cortejo com aquela imagem, acompanhada da banda tocando a marcha fúnebre, a menina caiu em desespero e gritou:

- Papai do céu está morto, papai do céu está morto!

- Não, minha filha. Papai do céu ressuscitou e está no céu.

- Está não, papai. Eu vi o “enterro” dele passando.

No Sábado, a lamúria cedia lugar para a apreensão. Será que o padre iria “achar a aleluia?” Diziam que era uma gota de sangue escondida na Bíblia, e se o padre não achasse... Mas depois que ele achava, o sino da Igreja tocava e podíamos suspirar aliviados. No entanto, o Sábado não era só de Aleluia; tinha também uma pitada de vingança coletiva. A malhação do Judas, autêntico linchamento em praça pública, era feita até com tiro de espingarda.

Aquelas manifestações de religiosidade popular hoje me parecem mais folclore do que celebração dos mistérios da Semana Santa. Esta surgiu da necessidade de historiar os eventos da Paixão de Cristo. Buscando reproduzir os episódios narrados pelos Evangelhos, a liturgia da Igreja Católica foi aos poucos organizando celebrações que deram origem à Semana Grande. No mundo medieval, ela também era denominada “semana dolorosa”, pois a paixão de Jesus era mais dramatizada do que celebrada como mistério, acentuando-se a comoção emocional do sofrimento de Cristo e não o evento salvífico da Ressurreição, como vitória sobre a morte. Parte daquele sentimento subsiste nas expressões da nossa religiosidade popular, lado a lado com o desvirtuamento de outras práticas quaresmais.

O jejum, com abstinência de carne (um dos mandamentos da Igreja), pode deixar de ser exercício de crescimento espiritual, para virar brincadeira de criança ou, pior ainda, rito vazio desvinculado do testemunho de vida. Isaías já desmascarava aqueles que achavam que bastava jejuar para agradar a Deus, e, ainda por cima, em vez de questionarem sua conduta, reclamavam da falta de resposta dos céus: – Para que jejuar se não fazes caso? Mortificar-nos se não prestas atenção? (Is 58,3).

Mas a razão de não serem ouvidos por Deus era que, ao mesmo tempo que jejuavam, eles faziam de tudo para se dar bem nos negócios, exploravam os trabalhadores, oprimiam os pobres, enquanto o jejum que Deus queria era outro: romper com os grilhões da iniquidade, libertar o oprimido, repartir o pão com quem tem fome, acolher o desabrigado, não se esconder do irmão necessitado.

Nesse contexto, a esmola deixa de ser obra de caridade, fundada na consciência de que o supérfluo de uns é o que falta para suprir com justiça a carência dos outros, para se tornar instrumento de ostentação, e, ao contrário do que nos ensinou Jesus Cristo, a mão esquerda não apenas sabe, mas propagandeia o que a mão direita faz. E a oração pode se tornar repetição vazia de fórmulas rituais, e não vivência profunda do mistério da relação entre o humano e o divino.

Não bastasse isso, a Semana Santa é vista por muitos como mais um feriadão. Se abro a caixa de mensagens do correio eletrônico, me deparo com e-mails anunciando pacotes turísticos para a Semana Santa. Todavia, apesar de ser um ardoroso defensor do lazer como direito fundamental de todos, penso que da mesma forma que pessoas de outras religiões vivem intensamente seus dias santificados, eu, como católico, não devo reduzir a Semana Santa a tempo de simples entretenimento, muito menos a dramatização patética ou folclórica.

Comentários