Saúde sobre a terra


O CEGO, JESUS e DISCÍPULOS.

Ao passar, Jesus vê um homem, cego de nascença.

DISCÍPULOS:

Rabi, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?

JESUS:

Nem ele nem seus pais. Mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus.

Esta cena abre o capitulo nove, considerado o mais dramático do Evangelho de João, por conter elementos típicos do drama, cuja essência é a tensão. Nesta passagem, um problema é colocado e o ritmo cênico da progressão dramática leva ao clímax para o esclarecimento da questão: a doença é fruto do pecado próprio ou expiação de culpa alheia? Jesus, ao final, rompe com essa miopia teológica, presente na pergunta dos discípulos e ensina que dar a visão é iluminar.

A Campanha da Fraternidade deste ano também pode iluminar nossa cegueira teológica e espiritual. Tratando do tema fraternidade e saúde pública, ela destaca esse relato do Evangelho de João. Seu lema, porém, não vem do Novo, mas do Antigo Testamento: Que a saúde se difunda sobre a terra (Eclo 38,8).

O versículo que inspirou o lema, como explica o texto-base da Campanha, faz parte de uma passagem bíblica emoldurada por duas coleções de ditados da sabedoria popular relacionados à saúde. Os ditos que vêm antes, sobre a temperança, alertam que muita gente morre por falta de moderação no que come e bebe, e diz que quem se cuida prolonga a vida. Os posteriores, sobre o luto, aconselham a chorar a morte sem exageros, pois abandonar o coração à tristeza de nada serve ao morto e, ainda por cima, prejudica o vivo.

O trecho central, no qual se encontra o verso utilizado como lema da Campanha, trata da medicina e da doença. Diferente da mentalidade arcaica, segundo a qual recorrer à medicina e aos medicamentos era falta de fé no Altíssimo, o texto diz que devemos honrar o médico e não menosprezar os remédios. Afinal, a ciência daqueles e a eficácia destes são dons de Deus.

O objetivo desta Campanha da Fraternidade é, primeiramente, refletir sobre a realidade da saúde pública no Brasil em vista de uma vida saudável. Melhoramos alguns indicativos na saúde pública, como expectativa de vida e redução da mortalidade infantil. Mas pioramos quanto ao consumo de drogas, bem como a doenças ligadas ao sedentarismo e má alimentação. O atendimento médico-hospitalar aos pobres ainda deixa a desejar. Por isso, além de refletir é preciso agir, suscitar o espírito fraterno e comunitário das pessoas na atenção dos enfermos e mobilizar por melhoria no sistema público de saúde.

O paradigma para essa mobilização é a parábola do bom samaritano, a atitude deste com o homem encontrado quase morto na estrada, revelada em sete verbos apresentados na narrativa de Lucas (10, 29-37): ver, que não é apenas olhar e passar adiante, como fizeram o sacerdote e o levita; compadecer-se, sendo solidário ao sofrimento do outro; aproximar-se, isto é, tornar-se o próximo do estranho caído na estrada; curar, transformando a compaixão em gesto concreto para salvar o próximo; colocar no próprio animal, disponibilizando ao próximo os meios de que dispõe; levar à hospedaria, mobilizando outras pessoas e estruturas para não deixar o próximo morrer; e cuidar, que resume a ética do bom samaritano, ética do cuidado mútuo e coletivo.

Os ensinamentos de Jesus Cristo, do Eclesiástico e do bom samaritano ainda são ideais distantes, em muitos aspectos que envolvem o tema fraternidade e saúde pública, tanto no plano individual, quanto no coletivo. Como está a relação entre saúde e temperança em nossa alimentação, seja em casa ou na cantina da escola? As tabelas do SUS rendem as honras devidas aos médicos e estes honram a arte da medicina? Cuidamos do próximo caído na estrada ou apressamos o passo para chegar logo à igreja, como diz a música Seu nome é Jesus Cristo?

A Campanha da Fraternidade suscita muitos questionamentos. Ela também chama a atenção para a fragilidade diante da doença que, paradoxalmente, pode ser tirana e democrática. Tirana porque se impõe, não respeita liberdades individuais, sequer o direito de ir e vir. Ninguém escolhe doença, como às vezes parece insinuar a lógica de alguns planos de saúde. Democrática porque em geral não faz acepção de pessoas. Diante de certas enfermidades, não há rico que não se sinta miserável. Mas seja como for, jamais deve ser vista como castigo dos céus. Dor e sofrimento fazem parte do mistério da condição humana, afligindo justos e injustos. Não fosse assim, que sentido teria o sofrimento de Cristo?

A fragilidade humana, porém, mesmo quando não tem cura, tem tratamento. No âmbito da saúde pública, qualquer tratamento de nossas fragilidades passa pelo modelo do bom samaritano, de ação individual e mobilização coletiva, em que cada um se torna o próximo do outro. Ao se fazer o próximo do estranho ferido, o samaritano revela uma maravilhosa dimensão da fragilidade humana. Ele esquece de si mesmo, deixa de lado seus afazeres, preconceitos e escrúpulos para limpar as feridas de um desconhecido. Essa vulnerabilidade ativa que, como diz o texto da Campanha, manifesta-se em ato de entrega ao projeto do outro e implica deixar-se nas mãos de quem se cuida, só pode ser expressão da fragilidade-fortaleza do amor fraterno. É a partir desse amor que podemos ser instrumentos de Deus para que a saúde se difunda sobre a terra.

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