Sinais dos tempos


Ao meu tio José Henriques da Costa,

o eterno maestro “José Pereira.”

No primeiro plano (da esquerda para direita): meu pai, eu e meu tio.

Tio Zé Pereira foi um dos maiores músicos que conheci. Maestro exigente e virtuoso saxofonista, formou discípulos na arte da música. Meu pai dizia que meu tio fazia uma festa sozinho com seu clarinete, instrumento que um dia ousei experimentar, e que ainda me faz guardar no peito a saudade do músico que não fui. Mas que hei de fazer? Se a história humana, como diz Mário Ferreira dos Santos, não deixa de ser a história das decepções, essa é apenas mais uma na conta do rosário pessoal de sonhos irrealizados. Meu tio também tinha o dom de ler os sinais da natureza. Consultando os sinais do firmamento, ele profetizava, com autoridade de mestre nas experiências do tempo, se ia ou não ia chover.

Decifrar sinais meteorológicos não é exclusividade de artefatos sofisticados. A natureza também se dá a ler a quem procura interpretá-la na simplicidade da sabedoria popular acumulada ao longo dos séculos, interpretação que pode ser difícil, mas não tanto quanto a dos sinais dos tempos. Jesus Cristo, não dando trela às artimanhas de saduceus e fariseus, disse-lhes certo dia que eles sabiam interpretar os sinais atmosféricos: “ao entardecer dizeis: vai fazer bom tempo, porque o céu está avermelhado; e de manhã: hoje teremos tempestade, porque o céu está de um vermelho sombrio” (Mt 16,2-3). Os sinais dos tempos, contudo, eles não eram capazes de compreender.

A expressão “sinais dos tempos”, naquele contexto, tinha conotação messiânica, apontando para o mistério da Encarnação. Todavia, essa expressão passou a ser utilizada, tempos mais tarde, em documentos do Concílio Vaticano II, para designar os fenômenos gerais e frequentes que marcam cada época, e que precisam ser interpretados à luz do Evangelho, se quisermos, como adverte a Gaudim et Spes, continuar na terra a missão do Redentor, que habitou entre nós para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido.

Interpretar os sinais dos tempos à luz da Boa Nova não dispensa, mas, ao contrário, exige que se leia o mundo também com as cintilações e penumbras das mediações humanas. Não é fugindo do tempo que entenderemos melhor os fios da história que junto tecemos. É claro que o aprofundamento nos saberes humanos não é garantia de visão plena dos sinais dos tempos, principalmente por se tratar da tentativa de compreensão da história dos dias atuais, na qual estamos mergulhados até a medula. Nossas bolas de cristal científicas e filosóficas não predizem com total segurança para onde a humanidade caminha: estamos progressivamente construindo a paz perpétua profetizada por Isaías e imaginada por Kant ou precipitando armagedons pressagiados por videntes que se regozijam em agourentar o futuro?

Não bastassem as dificuldades normais à interpretação em tempo real de uma história do presente, não há como negar que o mundo parece cada vez mais complexo, acelerado e paradoxal. Gilles Lipovetsky diz que estamos vivendo os tempos da hipermodernidade, na qual a humanidade se vê diante de paradoxos quase esquizofrênicos. De um lado, “é preciso ser mais moderno que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda; de outro, valorizam-se a saúde, a prevenção, o equilíbrio, o retorno da moral ou das religiões orientais.”

Vejam o paradoxo entre consumismo e sustentabilidade. Defendemos um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mas será que estamos dispostos a abrir mão do bem-estar e das riquezas derivadas do consumismo? Tome-se o exemplo do aumento vertiginoso de veículos tomando conta de nossas cidades. Parece uma tragédia anunciada: vias públicas coalhadas de veículos ultramodernos, automovendo-se como tartarugas e impedindo gente de se automover. E no cenário global, se antes falávamos no problema da sustentabilidade diante dos níveis de consumo dos Estados Unidos, como será, então, com a China no topo do mundo?

Mesmo diante dos problemas e paradoxos da hipermodernidade, Lipovetksy se prefere otimista, embora, como observa, isso hoje pareça um defeito. Para ele, crises sempre foram inerentes ao capitalismo, sistema flexível e de admirável adaptabilidade. Quem também prefere o direito à esperança é Karl Jaspers. Se não temos certeza do porvir, “quando filosofamos, não devemos deixar-nos dominar por profecias pessimistas. Como ignoro, tenho o direito de esperar na medida em que – no que me concerne e a partir da certeza que tenho quanto às origens – faço o possível, por pensamento e conduta, para me opor à catástrofe.”

Toda essa reflexão me fez voltar o pensamento para meu tio. Ao seu modo e no seu mundo, o eterno maestro lia sinais da natureza, lia e transformava em beleza os sinais da música, mas também não deixava de ler sinais dos tempos. Mesmo com as dificuldades de um maestro de cidade pequena, fazia o possível, por pensamento e conduta, para fazer da vida dedicada à arte um instrumento para ajudar o mundo a ser um lugar mais bonito de se viver. E de repente me bateu uma vontade danada de tocar um clarinete.

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