O mito da verdade


Em meu livro, Direito, mito e metáfora, trago um capítulo destinado ao mito da verdade. Abaixo, seguem alguns trechos daquele capítulo. Lembro que no livro podem ser encontradas as respectivas referências às citações bibliográficas.

A Verdade: mãe da Justiça e da Virtude

Falar sobre verdade é assunto problemático. A verdade da fé pode ser loucura para os olhos da ciência, tanto quanto os dogmas da ciência podem ser insensatez para os da fé. Nietzsche, incisivo como afiada lâmina a traspassar os enigmas humanos, incomodamente questiona:

...Então, o que é a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas...

Bertold Brecht, por sua vez, em sua obra Galileu Galilei, assevera que a verdade é filha do tempo e não da autoridade, o que coincide com o que nos diz a mitologia, posto que a Verdade — mãe da Justiça e da Virtude — é uma das filhas de Saturno que, em grego, é designado pelo nome de Cronos, ou seja, o Tempo, sendo representada sob a figura de uma mulher sorridente, mas modesta: está nua, tendo na mão direita um sol que ela fixa, na esquerda um livro aberto com uma palma; sob um dos pés o globo terrestre.

No mundo do direito, a verdade nem sempre é nua, sorridente e modesta, embora pretenda-se que seja mãe — ou boa madrasta... vá lá... — da justiça e da virtude.

Verdade formal e verdade real

Quod non est in actis non est in mundo (O que não está nos autos não existe no mundo). Este brocardo expressa a idéia de que o juiz, ao decidir, deve cingir-se à verdade formal, aquela que, segundo Manoel Antônio Teixeira Filho, é “a que se estabelece nos autos, como resultado das provas produzidas pelas partes [que pode ou não corresponder à verdade real,] a que se pode denominar de verdade em si, vale dizer, aquilo que efetivamente aconteceu no mundo sensível.”

Essa distinção ganha relevo no estudo da prova judiciária, que, segundo o nosso direito processual, pode valer-se de todos os meios legais ou moralmente legítimos para demonstrar a verdade dos fatos em que se funda o litígio. Mas, será possível mesmo provar judicialmente a verdade dos fatos? O que se deve entender por verdade? Será diferente do conceito de verossimilhança, já empregado no direito processual civil?

Primeiro é preciso entender que os fatos em si não são verdadeiros nem falsos; eles apenas acontecem; verdadeira ou falsa, aí sim, é a afirmação sobre eles, a narração ou descrição do que se passou no mundo sensível.

Ocorre que, por mais isento que seja o testemunho sobre um fato, ele sempre vai ser uma apenas uma versão da verdade; até uma fotografia ou uma fita de vídeo, supostos retratos fiéis do objeto fotografado ou filmado, nem sempre são tão fiéis assim. Podem, por exemplo, ser resultado de uma montagem que não precisa ser necessariamente uma adulteração, mas simplesmente uma edição do material gravado (no caso da fita), ou conseqüência do enfoque de quem está por trás da objetiva (no caso da fotografia).

Dito isto, temos de admitir, humilde e francamente, que é impossível, num processo judicial, obtermos a prova da verdade, humanamente inatingível, diferente do que ocorre nas telenovelas, em que aos telespectadores é permitido devassar até os mais íntimos pensamentos dos personagens. Na vida real, as coisas funcionam de maneira um tanto diferente, o que já é reconhecido pelos modernos processualistas, a exemplo do professor Luiz Guilherme Marinoni, que preleciona:

No que tange à questão da valoração da prova, é necessário que o juiz tenha em mente, lembrando-se de Voltaire, que as verdades históricas nunca passam de mera verossimilhança. Calamandrei, referindo-se a uma assertiva de Wach, advertiu que, quando se diz que um fato é verdadeiro, afirma-se, em substância, que ele atingiu, na consciência de quem assim o julga, aquele grau máximo de verossimilhança que, em relação aos meios limitados de conhecimento de que o julgador dispõe, é suficiente para lhe dar a certeza subjetiva de que aquele fato se verificou. Como diz Calamandrei, mesmo para o juiz mais atento e escrupuloso vale o limite fatal de relatividade que é próprio da natureza humana, pois o que vemos é aquilo que parece estarmos vendo. É por isso que todo o sistema probatório civil é preordenado não somente a permitir mas, verdadeiramente, a impor ao juiz de contentar-se, no apreciar dos fatos, com a verossimilhança. [E conclui sabiamente:] Não existe verdade, pois a verdade está no campo do impossível.

O jogo da verdade

Mas não é porque a verdade está no campo do impossível que o direito tem o direito de virar-lhe as costas, pois na busca da verdade possível, o julgador, as partes e todo o rito processual devem ser envoltos pela máxima sinceridade que, se por um lado não pode identificar-se com a qualidade do verdadeiro, ao menos deve caracterizar a atitude de quem age sem impostura ou malícia, ou seja, de quem procede com lealdade e boa fé. Esta, a propósito, também era uma divindade alegórica da mitologia romana, representada por uma mulher vestida de branco, com as mãos juntas. Aliás, as mãos postas simbolizavam a própria divindade, sob a qual os romanos proferiam seu juramento. A Fraude ou Má Fé, diferentemente, era um monstro híbrido com uma cabeça de aparência agradável — que exibia fora da água — mas que escondia mergulhado no rio o resto do corpo em forma de serpente com cauda de escorpião, para indicar que os enganadores mostram sempre as belas aparências e escondem com cuidado a armadilha que prepararam.

Portanto, a verdade — ou verossimilhança — que exsurge do processo deve resultar de um jogo limpo, com regras claras e determinadas, e jamais de uma cilada. Tais regras serão tanto mais eficazes quanto forem mais adequadas aos objetivos a que se prestam e à natureza dos fatos a serem provados. Atualmente, por exemplo, já se dispõe do exame do D.N.A. como meio de prova praticamente irrefutável numa investigação de paternidade. No entanto, o grande paradigma de sapiência na apreciação da prova judicial resultou de um engenhoso artifício empregado na célebre sentença de Salomão.

Houve tempo, aliás, em que mais do que prova da verdade dos fatos, o que existia era uma provação sobre-humana das partes envolvidas no litígio, notadamente o réu, como é o caso das ordálias, muito em voga na Idade Média, como lembra Manoel Antônio Teixeira Filho:

...A ordália consistia em submeter a pessoa a determinada prova, supondo-se que Deus não a deixaria sair com vida, ou sem algum sinal evidente, no caso de não dizer a verdade; por isso, as ordálias também foram denominadas de juízos de Deus... [dentre as quais temos]... a prova das bebidas amargas...utilizada em relação à mulher acusada de adultério; se após ingerir a bebida o seu rosto se contraísse e os olhos ficassem impregnados de sangue, era considerada culpada; na prova pelo fogo o acusado tocava com a língua em um pedaço de ferro incandescente, ou tinha de caminhar com os pés descalços sobre barras de ferro, sem manifestar dor; na prova das serpentes, ele era posto no meio delas, havendo a crença absurda de que somente seria picado se fosse, realmente, culpado; na prova do pão e queijo, se impunha ao acusado deglutir quantidade considerável desses alimentos: caso não o conseguisse, era tido como culpado...

Naturalmente, como nem todos os acusados tinham a resignação e a grandeza espiritual de Jó, nem a gulodice para comer tanto sanduíche de queijo sem qualquer acompanhamento, esse sistema de valoração da prova não era compatível com a quase totalidade dos seres humanos.

Hoje, felizmente, não se concebe mais tentar provar a verdade a ferro e fogo. No entanto, ainda é fundamental invocar um pouco da sabedoria salomônica para proceder-se à colheita das provas, posto que a sensibilidade humana não pode ser substituída por um detector de mentiras, mesmo que este seja um equipamento de última geração.

A propósito, é curioso como determinados recursos para apuração da verdade revestem-se de tanta perspicácia, que são mais eficazes do que certos meios de prova de natureza técnica ou científica, como é o caso do artifício utilizado nesta narrativa de João Ribeiro, intitulada Acerca da mentira:

Sei da história de um pastor americano ou escocês (já não me lembra o hemisfério desse conto) o qual, uma vez, ao largo e atento auditório que costumava ouvi-lo, fez saber que no dia seguinte iria falar sobre o feio pecado da mentira.

— Vou pregar amanhã sobre a mentira, advertiu o bom pastor. Peço, porém, a todos os meus queridos ouvintes que, para melhor preparação do que irei dizer, leiam todos o capítulo dezessete de São Marcos. Considero indispensável essa leitura prévia.

No dia seguinte, compareceram todos. E logo, o pastor inquiriu previamente:

— Aqueles que leram o capítulo 17 de São Marcos, conforme a minha recomendação, queiram levantar-se.

Levantaram-se todos como um só homem. E o pastor prosseguiu:

— Sois vós realmente os verdadeiros ouvintes do meu sermão de hoje sobre a mentira. Porque, em verdade, não existe o capítulo dezessete. O evangelho de São Marcos tem apenas 16 capítulos.

Exortação aos fiéis: cuidado com o que afirmam. Não é difícil provar que não leram o capítulo dezessete de São Marcos. E não esqueçam que no mundo do direito a verdade tanto liberta, quanto se presta para conduzir o cristão ao caminho do cárcere ou à cova dos leões.

Amém.

Comentários