Polícia Comunitária e promoção da paz

Segunda-feira, 25 de julho. Aula inaugural do Curso de Polícia Comunitária, no auditório da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campus III, Guarabira-PB. O Tenente Jales, coordenador local do curso, havia me enviado o livro elaborado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) destinado ao Curso Nacional de Promotor de Polícia Comunitária. Achei por bem, então, harmonizar minha fala ao conteúdo do material e resolvi tratar do tema da paz.

De início, citei a célebre (e repisada) frase de Ihering, do livro A luta pelo direito, que muita gente cita e pouca gente lê: o fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo, a luta. Frase bonita e de efeito, feito verso que se recita para chamar aplauso, mas que é bom que não fique só no efeito. Afinal, paz deveria ser um bem presente nas coisas da vida, algo mais próximo do sentido bíblico de Shalom.

Shalom, traduzido como paz, é termo tão rico, mas tão rico, que nenhuma palavra da nossa língua, sozinha, é capaz de dizer o que ele quer dizer. Seu sentido aponta para a ideia de completude e perfeição, de que não falta mais nada a alguém para ter uma vida digna. Pagar a última prestação daquele financiamento quase sem fim da casa própria! Ufa! Shalom! Estar com saúde, arranjar aquele emprego e o casamento com o qual sonhava! Shalom! Ter filhos e amigos com quem partilhar alegrias e tristezas! Shalom!

Em Levítico 26,3-13, o redator sagrado fala em bênçãos bastante concretas que podem ser exemplos da completude do shalom: chuva no tempo certo e terra boa para plantar e colher; fartura na mesa, segurança e proteção das intempéries e contra os inimigos... Shalom também é paz que não combina com vingança, pois esta atrai maldição (1Rs 2,33), e combina muito menos com o conformismo pacífico dos explorados. Não é à-toa que profetas denunciavam a falsa paz daqueles que enchem a boca, e não vida, de shalom. Jeremias, falando de falsos profetas e de autoridades gananciosas assim dizia: “Eles cuidam da ferida do meu povo superficialmente, dizendo: ‘Paz! Paz!’ quando não há paz” (Jr 6,14). Ezequiel (13,10-12) também denunciava a prática de curar feridas do povo com mentiras, de maquiar a realidade, igual a rebocar e caiar um muro prestes a ruir.

A proposta de formação de promotores de polícia comunitária tem tudo a ver com essa paz concreta sonhada pelo povo. Diferente de policiamento comunitário, a concepção de polícia comunitária não é de assistência policial à comunidade, mas um novo jeito de ser e fazer polícia, em parceria com a comunidade. Daí a necessidade da formação do policial para essa nova filosofia de trabalho.

Lembrei aos policiais, recém-formados no curso de formação de soldados, que qualquer processo de educação não deixa de ser um processo de transformação. Moldar o corpo de alguém para ser um militar não é fácil, como já observava Michel Foucault, tratando do árduo processo de transformar o corpo do camponês em corpo de soldado. É preciso muito suor e sacrifício. Imagine, então, tentar mudar a mente e o coração do soldado para fazê-lo promotor de polícia comunitária. Certamente não bastam os gritos ritmados do sim senhor, não senhor!

Falei-lhes ainda da importância das disciplinas que iriam ser estudadas no curso que então se iniciava, entre as quais destaquei a educação em direitos humanos e a mediação de conflitos. Disse-lhes que o estudo e a vivência de ambas podem contribuir para que os policiais se transformem em promotores da paz.

Chamei-lhes a atenção para dois modos de enxergar os direitos humanos. O primeiro, como o conjunto de normas e princípios ligados ao reconhecimento e respeito da dignidade humana, com desejo de universalização. O segundo, na perspectiva de Herrera Flores, de direitos humanos como resultado sempre provisório das lutas sociais pela dignidade, vista não como algo distante e abstrato, mas como uma meta que se alcança no acesso igualitário e generalizado aos bens culturais (materiais e imateriais), que tornam a vida digna de ser vivida, ideia próxima à do shalom do Levítico.

Quanto à mediação dos conflitos, reportei-me a advertências do livro da SENASP, segundo as quais seria ingênuo imaginar que a solução pacífica das lides do dia-a-dia é atribuição exclusiva do Estado. Muitas vezes faz-se necessário que os próprios atores dos conflitos possam encontrar saídas pacíficas para resolução destes. E o policial bem que pode ser um mediador, alguém que não procura culpado, nem impõe uma decisão, mas ajuda os interlocutores a encontrar a melhor solução, longe da lógica binária do ganhador/perdedor do contencioso judicial.

Obviamente, não é do dia para a noite que se pode construir a sonhada polícia comunitária. Muito ainda há para ser feito. Mas a leitura do material da SENASP e a participação naquela aula inaugural foram motivo de alento e de renovação da eterna esperança na construção diária dos direitos humanos e da cidadania.

E por falar em eterna, terminei a aula com a citação de uma frase de Honoré de Balzac, também constante do material do curso: “os governos passam, as sociedades morrem, a polícia é eterna”. Brinquei então com a plateia, comentando: será que Balzac, que era dado à boemia, estava sóbrio quando cunhou essa frase? Não seria melhor dizer como Machado de Assis?: “Mas tudo passa, até os cunhados” (sem ofensa a nenhum cunhado em particular, pois também sou um deles). Brincadeiras à parte, conclui que bom seria que essa polícia eterna fosse a polícia comunitária, na qual o policial procura se tornar um “pedagogo da cidadania”, pois, do contrário, seria melhor que ela também passasse, como passam todas as coisas, até os cunhados.

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