INFERNO: DOR E TRAGÉDIA PARA DEUS

Ideias extraídas do livro O que queremos dizer quando dizemos “inferno”, de Andrés Torres Queiruga.

Qualquer exposição metódica sobre o inferno só ganha sentido se for feita em relação à salvação. Deve-se abandonar o discurso baseado na pastoral do medo, que caracteriza a visão difundida por muitos que se ocupam em falar sobre esse assunto. A problematização sobre o inferno é um mistério. Por isso é campo propício para especulações, instrumentalização do medo e formulação de discursos destinados a escravizar consciências, fortalecer o poder e legitimar a opressão.

Visto a partir do núcleo da religião, o tema do inferno é secundário e colateral. Entretanto, ele tem despertado o interesse de muitos pensadores no decorrer dos séculos e, de certa maneira, atinge a todos nós, pois ninguém que crê pode escapar aos questionamentos a respeito da condenação eterna.

É importante não perder de vista, no que concerne à hermenêutica dos enunciados escatológicos, que à linguagem sobre o inferno não se deve emprestar um caráter literal, mas metafórico. Por isso, quando a Escritura fala dos postremos, suas proposições não devem ser levadas na conta de uma reportagem sobre o além. Em vez disso, deve ser vista como símbolos fundamentais para iluminar nossa vida. Do contrário, poderemos cair numa leitura fundamentalista.

Todavia, devemos ter o senso de responsabilidade de não enveredarmos levianamente por qualquer interpretação das verdades reveladas, pois mesmo sabendo que a pesquisa teológica é marcada pela liberdade de pensamento, deve ser pautada por uma reflexão responsável.

Não é legítimo falar em inferno como castigo, mas sim como tragédia para Deus. Falar da condenação como castigo é transformar Deus num ser interesseiro, que castiga quem não lhe presta o devido serviço, ou num juiz implacável movido pelo desejo de vingança, o que está longe da verdade revelada pelas Escrituras. Nestas, a condenação é uma tragédia para Deus, pois tudo o que Ele faz ou manifesta é em vista da salvação.

Deve ser evitado, ainda, o abuso moralizante. Em muitas religiões, o inferno tem funcionado como fator de moralização, o que causa o risco de instrumentalizar Deus para controlar consciências, o que é típico de uma educação autoritária.

Mesmo considerando a simbologia que envolve as imagens teológicas sobre o inferno, é possível identificar algumas afirmações seguras sobre este. Ressalte-se que o símbolo não implica deficiência no objeto, mas limitação em nossa capacidade cognitiva. Trata-se de insuficiência subjetiva por suberabundância objetiva.

Inferno é negatividade, não-salvação. Inferno é o que Deus não quer, o que nunca deveria ser. Portanto, ele nunca pode ser visto como ação positiva de Deus, nem como castigo que Deus inflige diretamente às suas criaturas. Como negatividade, o inferno é a culminância do mal, estando sempre do “outro lado de Deus.” Este cria por amor e para a salvação, e o inferno, seja o que for, é a não-realização e a frustração desse propósito, sendo um mal impossível de Deus evitar em respeito à liberdade humana. Assim se explica a ideia de que não é Deus quem condena, mas o pecador que se condena a si mesmo.

Em nível objetivo, nada mais sabemos sobre a possibilidade do inferno, exceto o seu caráter terrível, que podemos intuir não pelos sonhos monstruosos de uma razão subjugada pelos fantasmas da imaginação, mas como o polo oposto daquilo que podemos perder: a salvação como dom de Deus.

Afora as afirmações intoleráveis sobre o inferno e o que de fato sabemos sobre esse conceito escatológico, ainda é possível fazer algumas conjecturas. Podemos sustentar a ideia do inferno como auto-sentença condenatória. Diferente da lógica punitiva e juridicista, essa ideia responde à nova consciência da modernidade, respeitando o valor da liberdade e autonomia humanas.

Por outro lado, surgem algumas críticas a tal concepção. Uma delas é o argumento de que pensar o inferno como auto-sentença condenatória definitiva tornaria impossível a teodiceia, porque poria em questão ou a bondade de Deus (não quereria que todos se salvassem) ou então sua onipotência (querendo-o, não poderia salvá-las). A esse argumento, poder-se-ia contrapor a afirmação que leva em conta o caráter inevitável do mal como fruto da liberdade humana. Nesse caso, entendemos que Deus é bom, dado que deseja a salvação de todos; mas que é absurdo salvar alguém à força.

Outra crítica é a de que a auto-condenação eterna pressupõe a imortalidade natural da alma. Em nível filosófico, é muito difícil compreender como um ser que nasce não esteja destinado naturalmente à morte. Não faria sentido, portanto, que a imortalidade, que na Bíblia é sempre dom de Deus, fosse conferida ao ser humano apenas para fazê-lo sofrer no fogo do inferno.


É quando surge outra conjectura, que é a do inferno como a morte definitiva. Se a vida eterna é um dom, quem não o aceita fica privado dele, não se salva, morre. Nesse sentido, o inferno seria a segunda morte, o salário do pecado, de que fala a Carta aos Romanos.


Tem-se ainda uma terceira hipótese a ser considerada. O inferno como condenação do mal que há em cada um. A liberdade é algo muito sério e tem consequências graves e terríveis; porém não é tão incondicionada que possa levar à negatividade absoluta, ao nada. Assim é possível conciliar a questão da bondade com a onipotência de Deus, que deseja fazer tudo para salvar, mas que respeita uma liberdade que é tão somente limitada. Entretanto, o ponto-chave dessa proposta está na transcendência decisiva da liberdade, vista como a faculdade do definitivo. Pode uma liberdade finita chegar a dispor totalmente de si mesma? Pode uma liberdade distorcida, mas não demoníaca (capaz de querer o mal pelo mal), optar pela infelicidade total, pelo nada absoluto?


Na perspectiva dessa terceira conjectura, é possível partir da ideia do “agradecimento” de Deus, que aparece na simbologia do Juízo Final, em que o Nazareno agradece como próprios os benefícios feitos aos pequeninos. E como não existe ninguém que alguma vez não tenha feito o bem a alguém, Deus agradeceria e salvaria ao menos o que há de bom em cada um, salvando esse lado bom, ainda que esse resgate seja feito “como por meio do fogo”. Existe inclusive a interpretação das imagens bíblicas do juízo final, na qual as ovelhas e os cabritos não se referem a duas classes de pessoas, e sim a duas realidades dentro de cada um de nós. Salvar-se-á o bem que está dentro de cada um e se perderão, aniquilando-se, os cabritos dentro de cada pessoa.

Nessas conjecturas e reflexões, deve-se abandonar a lógica comercial, que interpreta a salvação de maneira objetivante e mesquinha: “Se me salvo, estou salvo; o resto não me importa; livrei-me do castigo.” Em vez disso, deve-se levar em conta a lógica do amor, na qual o que importa é a profundidade da comunhão. Nesse caso, a mínima perda tem sempre algo de tragédia irreparável. Pois não se trata de um prêmio conferido a partir de fora, mas da realização do ser no que tem de mais íntimo e precioso: só quem ama de verdade intui o terrível da oportunidade perdida.

Também não se deve ficar refém do jogo infantil do prêmio e do castigo, ou refletir como vítima inconsciente do espírito de ressentimento ou do desejo de vingança. Do mesmo modo, não é sábio fazer como alguns cristãos que, quando descobrem que Deus salva de verdade em qualquer religião, pensam que não serve para nada a felicidade de descobri-lo como o Pai revelado por Jesus de Nazaré.

O fundamental, portanto, é que Deus é amor e busca por todos os meios nossa salvação, mas o faz no respeito, delicado e absoluto, à nossa liberdade. Esta, porém, pode resistir à salvação, e somente dessa resistência procede a não-salvação ou inferno. E seja este o que for, e consista em que consistir, tem sempre algo de terrível e irreparável para nós, mas que nunca é um castigo divino, e sim, uma dor e uma tragédia para Deus.


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