Hiatos



Hiatus, em Latim, quer dizer abertura da boca. Da mesma família, temos em Português o adjetivo hiante, jeito bonito de se dizer escancarado, faminto ou com a boca aberta. Temos ainda o substantivo hiato, que para o anatomista é fenda no organismo, e para o gramático, seqüência de duas vogais em sílabas separadas (a própria palavra hiato contém um hiato). Figurativamente, hiato é lacuna, intervalo, falha, abismo.

Hiato também é o nome de um curta-metragem de Vladimir Seixas, sobre um inusitado passeio a um shopping center. Em agosto de 2000, integrantes de movimentos dos sem-teto, sem-terra e moradores de favelas (gente quase sem-nada) organizaram uma visita a um dos shoppings mais chiques da zona sul carioca. Fora dos padrões econômicos e estéticos da freguesia de um shopping, aquele gente resolveu chamar a atenção da sociedade. Olharam vitrines, provaram roupas de griffe, experimentaram cosméticos, colocaram os filhos para brincar com brinquedos importados, e confraternizaram-se, na praça da alimentação, banqueteando-se com pão e mortadela, e brindando com refrigerante do tipo tubaína. Tudo isso sob o olhar atônito e atravessado de clientes e lojistas, e com a cobertura da grande mídia. Nada foi quebrado ou subtraído. O que houve, para utilizar a expressão do diretor do documentário, foi uma “guerrilha semiótica”, pois o confronto ficou no plano dos signos. O passeio tornou visivelmente incômodos sinais e símbolos de dois mundos separados por um grande abismo: o mundo do consumismo e o da exclusão social.

No primeiro, impera a idolatria do mercado e o mito da soberania do consumidor. Nele fabricam-se sonhos de consumo, massificam-se desejos e comportamentos, a pessoa é vista pelo que tem, e predomina a ideia de que só tem valor aquilo que tem preço. Qualidade de vida, para os seus habitantes, confunde-se com capacidade de comprar coisas, e prosperidade pode ser explorada como miragem religiosa. Para os senhores desse mundo, o melhor paraíso é o fiscal.

Do outro lado do precipício vivem os desvalidos de todo gênero, outrora apelidados de oprimidos, marginalizados, descamisados ou explorados. Hoje se costuma chamá-los de excluídos, por serem habitantes das terras da exclusão social. Esta, lembra o professor Antonio José Avelãs Nunes, é um fenômeno dramático e qualitativamente novo. Pois quando falamos em exploradores e explorados, contamos com estes últimos: sem explorados não há exploradores, o que coloca os primeiros dentro do sistema. Os excluídos, porém, são postos do lado de fora, como se nem existissem. Talvez por isso sua visibilidade seja tão constrangedora.

Para piorar as coisas, o fosso entre esses dois mundos é acentuado ainda mais pela disseminação da ideologia do consumo. Esta é difundida por toda parte, quer as pessoas possam ou não consumir. Boaventura Sousa Santos, em entrevista concedida ao programa Roda-Viva em 2002, observava que a coca-cola gastava mais dinheiro em publicidade na África, onde o consumo da bebida não era significativo, do que em outros continentes. Nesse e em outros casos, a ideologia do consumo sempre chega na frente da prática do consumo, e de forma desproporcional a esta. Esse é o tipo de globalização que inclui por exclusão. Incluem-se todos na ideologia do consumo, mas não na capacidade de consumir, do mesmo modo que são incluídos na ideologia do trabalho, e não no mercado de trabalho.

Estreitar esses abismos não é fácil. Requer muita ciência e consciência, muito pensar e muito agir. E mesmo no âmbito restrito da economia, a redução desses hiatos não é coisa que se resolva apenas com cifras e estatísticas. Para tentar diminuir a desigualdade social, a economia de hoje precisa mais de filósofos que de econometristas, como observa Stoffaës. Mais que isso, é necessário pregar e construir a fraternidade, tarefa que não se reduz a teorias ou retóricas. Pois os grandes hiatos a se superar não são os das mentes e bocas; são os hiatos dos corações.


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