Trabalho de Sísifo ou emprego no céu?



Ao professor João Maurício Adeotado.

Meu pai, sempre muito espirituoso, costumava dizer que um trabalho sem fim era como um emprego no céu. Certo dia, dizia ele, um homem morreu e resolveu procurar São Pedro, pedindo-lhe um posto de trabalho, no que foi prontamente atendido. Pensava, talvez, que teria a mesma moleza do trabalho aqui na terra. Ledo engano. De manhãzinha, todo mundo tinha de botar o sol para fora de sua morada celestial, além de fazê-lo girar durante o dia, numa das várias esferas ptolomaicas. Na boca da noite, tinham de colocar o sol alcova adentro. Mas quando o coitado do homem pensava que ia descansar, chegava a hora de colocar a lua e as estrelas para fora, cada qual nas suas esferas, para realizarem seu brilho e seu giro ao redor do mundo, até que tudo começasse de novo no romper da aurora.

Emprego no céu, na história contada por meu pai, era semelhante ao trabalho de Sísifo, inveterado rebelde das esferas da mitologia, condenado a rolar uma grande pedra morro acima, até que ela, por uma força irresistível, tornasse a rolar montanha abaixo, fazendo com que Sísifo tivesse que começar tudo de novo, eternamente.

A imagem do trabalho de Sísifo me foi despertada na mente, num curso que fiz esta semana, ministrado pelo professor João Maurício Adeodato, sobre princípios gerais do direito e sua utilização pelo judiciário brasileiro, em especial no STF, e influência do pensamento de Robert Alexy. Logo no início, o professor João Maurício fez referência ao mito de Sísifo, cuja simbologia tem muito a ver com o curso (ou o percurso), que fizemos naquela oportunidade.

Delineando os dois grandes problemas da Filosofia do Direito, o do conhecimento, ligado à busca da verdade, e o problema ético, vinculado à busca da justiça, o professor apresentou um breve itinerário das tendências da filosofia jurídica, num percurso que poderia ser chamado “do céu à terra”.

Começando pelo período da indiferenciação, reinante nas sociedades primitivas, em que o direito justo se confundia com o direito posto e a história se misturava com o mito, passeamos pelos diversos jusnaturalismos: o cósmico, em que deuses e homens se submetiam à verdade e à justiça escritas nas estrelas; o teocrático, da época de Agostinho de Hipona, da verdade e justiça emanadas dos imperscrutáveis desígnios divinos; o teológico, dos tempos da Igreja triunfante de Tomás de Aquino, da lei natural divina inscrita no coração humano; o antropológico, de Hugo Grotius e Pufendorf, que talvez pudesse ser representado pela figura do homem vitruviano: o homem no centro da esfera, o umbigo, o centro de gravidade do homem; o democrático, centrado no princípio da maioria, de contar cabeças para estabelecer verdade e justiça, que não se confunde com a vontade geral, de Rousseau. Por fim, chegamos ao chão dos positivismos, em que se consolida o processo de esvaziamento ético do direito, para dar lugar à visão eminentemente procedimentalista, com seu espectro que pode ir do legalismo extremo de Montesquieu, em que a lei é tudo, e o juiz, apenas a boca da lei, até o realismo, no qual o direito é construído antes de tudo na cabeça do juiz. Esse realismo, nos tempos atuais, marcados pela hipermodernidade de que nos fala Lipovetsky, pode fazer um insigne Ministro de nossa Suprema Corte admitir realística e publicamente, que primeiro o juiz decide no seu íntimo, e só depois vai buscar os fundamentos de sua decisão, ou ainda, no afã de fazer justiça no caso concreto, decidir que uma menina pode ser mulher, mesmo aos 12 anos de idade.

O percurso do céu à terra foi iluminador. A visão sobre o mundo do direito e suas esferas tornou-se mais clara. Nesse percurso, foi importante perceber como ideias, pensamentos e sentimentos do mundo, nascidos mesmo num passado longínquo, de corações e mentes como os de Parmênides, Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, entre tantos outros, não se desfizeram em pó, mas continuam a instigar mentes e sensibilizar corações pós ou hipermodernos, contribuindo para o alargamento da compreensão filosófica das esferas do céu, da terra, dos seres humanos, e do direito criado por estes no concerto social.

Mas há sempre o risco de maior clarividência descambar para vertigem ou apatia. Conhecer mais a fundo os problemas da verdade e da justiça nas esferas do direito não significa encontrar soluções razoáveis para eles. Em vez disso, pode deixar a sensação de que são problemas insolúveis, de que de nada adiantam os 28 topoi de Aristóteles, ainda que pudessem ser multiplicados pelas 28 regras do discurso prático de Alexy ou equacionados com miríades de teorias que giraram, giram e continuarão a girar vertiginosamente nas esferas da filosofia e da prática jurídicas. Pois verdade e justiça, nessas esferas, poderiam ser apenas o que aqueles que detêm o poder dizem ser o verdadeiro e o justo. Sendo assim, o percurso do céu à terra resultaria num trabalho de Sísifo, tão eterno quanto inútil.

Ocorre que, desde a primeira vez que ouvi do professor João Maurício a referência ao vaivém sisífico presente na reflexão sobre os problemas fundamentais da filosofia jurídica, também me veio à mente um pensamento espirituoso, do ensaísta francês R. Caillois, que li num dicionário de citações: “Il n’y a pas d’efforts inutiles. Sisyphe se faisait les muscles” (não existem esforços inúteis. Sísifo ganhava músculos). Ou, como poderia ter dito meu pai, um emprego no céu pode até ser um trabalho sem fim, mas não um trabalho inútil. Afinal, o que seria de nós, aqui embaixo, sem pessoas que contribuem para fazer girar e brilhar os astros em suas esferas celestes?

Comentários

  1. Interessante artigo. Fiquei pensando que na íngreme caminhada da vida, dormimos e acordamos como Sísifos.
    Rosana Diôgo.

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  2. Fiquei maravilhado com vosso texto cognominado TRABALHO DE SÍSIFO OU EMPREGO DO CÉU Dr. Antônio. Ouvi recentemente essa alegoria mitológica e fiquei intrigado com a sapiência e possibilidades silogísticas dela suscitadas. Sabemos que o trabalho de Sísifo foi fruto de pena a ele cominada quando de sua morte por velhice quando Zeus enviou Hermes para conduzir sua alma a Hades. No tártaro, Sísifo foi considerado um grande rebelde e teve o castigo aplicado, juntamente com Prometeu, Títio, Tântalo e Ixíon. Assim, silogisticamente, penso o quão árdua é a tarefa hodierna dos rebeldes juízes de 1a entrância no fito de se manterem íntegros e imparciais nos seus julgados, aplicando o seu livre convencimento e a justiça acima da Lei. Destarte, críticas sentenciais emitidas por insígnes ministros nos faz cônscios imaginar que o que lhes move mesmo é irá; irá por serem contrariados nas 1as entrâncias, face seus acórdãos, que mais parecem acordãos. Continue assim nobre magistrado, ganharás mais músculos sapienciais e indubitavelmente aplicarás mais justiça.

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  3. Rosana e Kennedy, obrigado pelos comentários.

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  4. É sempre um prazer lê-lo, tamanha a eloquência e o domínio das ideis e palavras. Acho difícil o Prof. João Maurício ter falado melhor...

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  5. Obrigado, Christiane. Um grande abraço, minha amiga.

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