Razões para acreditar?: sobre coca-cola, pecado e graça.


Confesso que minhas relações corporais e espirituais com a coca-cola sempre foram marcadas por certa desconfiança, principalmente quanto às supostas mensagens subliminares de suas propagandas. Na adolescência, a água espiritual que eu bebia jorrava das fontes da Teologia da Libertação. Engajados na Pastoral de Juventude do Meio Popular (PJMP), nós entoávamos uma música para exorcizar o demônio das multinacionais do nosso país, cujo refrão dizia mais ou menos assim: “Vai embora, coca! Vai embora, coca! Leva tua fanta, deixa de nos explorar...” Santa ingenuidade! Mandar a coca embora para onde? Nem ela se foi, nem o refrão foi exorcizado da minha memória.

Depois descobri que a coca-cola havia reinventado um símbolo do Natal: o Santa Claus, papai Noel de primeiro mundo, saído da prancheta do desenhista Habdon Sundblom, por encomenda da poderosa multinacional. Como era de se esperar ─ talvez sob influência do ranço daquele refrão entranhado na memória ─ minha reação foi contrapor àquela imagem do bom velhinho, catalisador do consumismo natalino, a do Menino-Deus na manjedoura, belissimamente pintado no Evangelho de Lucas ─ a santa ingenuidade, de novo, teria me feito perder o senso de realidade?

Agora a coca-cola vem com a campanha: “Razões para acreditar. Os bons são maioria.” Incitando-nos à visão positiva da vida, a propaganda lembra que há mais pessoas cantando do que brigando no trânsito, que enquanto uma pessoa diz que tudo vai de mal a pior, cem casais sonham em ter filhos; que para cada corrupto, que provoca subtração da vida, há milhares de doadores de sangue, doando vida, e enquanto a natureza geme em dores do parto, quase cem por cento das latas de alumínio são recicladas no Brasil. Terá a coca-cola reinventado a sustentabilidade e o otimismo no mundo atual? Sei não. Meu eu-desconfiado, mesmo favorável à disseminação de uma visão positiva da vida, prefere pensar na luta entre o bem e o mal, entre otimismo e pessimismo, na perspectiva do pecado e da graça.

Na relação entre pecado e graça, o enfoque predominante deve ser sempre o desta última. Antes do pecado original vem a bênção original. Acima das situações ligadas ao mal paira o fim último do bem, ou do Sumo Bem, a que todos e tudo nos destinamos. Antes e acima do pecado, devemos levar em consideração a graça: “onde avultou o pecado, a graça suberabundou” (Rm 5, 20). Pois, se por um lado, Adão fez manifestar no mundo situações e realidades que causam o afastamento entre o ser humano e Deus, por outro, pelo amor e morte redentores de Jesus Cristo, a salvação se dá a todos que a aceitam, como dom gratuito do Pai.

Nessa relação, temos, de um lado, o pecado como tudo aquilo que separa o ser humano de Deus, fonte de toda a vida. Assim, o pecado surge como uma realidade que afeta a vida na Terra, acarretando todo tipo de morte. Esse afastamento irrompe porque o ser humano, dotado de consciência e liberdade, não é mero fantoche nas mãos de um demiurgo. Por isso, assim como é capaz de amor, também é capaz do pecado. E quando, livremente, procura ser critério para si mesmo, provoca uma ruptura consigo mesmo, com Deus e com os irmãos.

No Gênesis, temos os grandes paradigmas das histórias de pecados da humanidade: a soberba de Adão, de querer ser Deus de si mesmo; o pecado familiar de Caim e Abel; o pecado cósmico que desencadeou o dilúvio, que pode, nos dias de hoje, ser relacionado aos males que causamos ao meio ambiente; ou ainda o pecado político, da torre de Babel, que expressa a situação da cidade, construída não para o convívio fraterno, mas para exclusão, dominação e discórdia.

Todas essas situações, e outras mais que pudessem ser enumeradas, como são desvios intencionais ao projeto de Deus, são causa de dor e sofrimento. Todavia, em toda a história permeada pelo pecado, Deus sempre intervém, não para tirar a liberdade de ninguém, mas para ajudar o ser humano na luta contra o mal. Em outras palavras, toda a história da salvação é marcada pelo pecado, porém muito mais pela graça. Esta não contradiz nem elimina a liberdade humana. Graça e liberdade não são excludentes, mas se integram, pois ambas provém de Deus, e Deus não se contradiz.

É bom lembrar, ainda, que o mal moral, fruto da liberdade humana, não deve ser imputado, de maneira maniqueísta, a um deus do mal. Um diabo de chifres, que nos deixa possessos a ponto de nos retirar totalmente a liberdade é uma visão ingênua. Pois se até o Onipotente respeita o nosso livre-arbítrio, por que atribuir o quinhão de nossa responsabilidade sobre o mal a possessões demoníacas?

Nesse caso, também seria ingenuidade enxergar a coca-cola como um demônio hipermoderno a ser exorcizado, e seria preconceito dizer que não há qualquer razão para acreditar nas boas intenções de uma campanha que pretende espalhar o otimismo mundo afora. Isso não significa, porém, abrir mão do senso crítico, sem o qual é mais fácil sermos manipulados por qualquer entidade hipermoderna que pretenda ser tão onipotente quanto o Onipotente. Se nem nas mãos do Onipotente somos fantoches, por que razão deveríamos ser marionetes manipulados pelos cordéis do deus-mercado?

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