Mitos e metáforas da justiça


Em minhas aulas, costumo provocar os alunos para que busquemos, juntos, contemplar alguns mitos e metáforas do mundo jurídico. E quando discutimos as concepções de justiça, que sempre se apresenta como valor fundamental (se não essencial) do direito, é inevitável viajar por alguns desses maravilhosos mitos e encantadoras metáforas:

─ O que é justiça? É dar a cada um o que é seu? Mas isso não significaria dar ao pobre a pobreza e ao rico, a riqueza? ─ Não! Justiça é dar a cada um o que deve ser seu. Mas a quem cabe dizer o que deve ser o “seu” de cada um?

Para alguns, o justo é o conforme com o direito. Outros, porém, retrucam que o direito é que deve ser conforme com a justiça. Esta, no âmbito estritamente científico, chega a ser vista como um pseudo-conceito, por expressar não somente uma ideia, mas um valor e um ideal. Talvez por isso tenhamos que falar sobre ela por meio da analogia, como faz de forma muito bonita o mestre Flóscolo da Nóbrega, ao dizer que justiça é o horizonte na paisagem do direito, frase que é verdadeira poesia em prosa, que pode dizer tudo, e ao mesmo tempo, nada, pois o que são, afinal, os horizontes?

Para Rubem Alves, horizontes são o referencial do nosso caminhar, cercando-nos por todos os lados. No entanto, eles não deixam de ser símbolos, uma vez que são testemunhas do ausente, saudade do que ainda não nasceu. O próprio Flóscolo da Nóbrega, ao desenvolver um pouco mais sua bela metáfora sobre a justiça e o direito, termina recorrendo a outros símbolos e metáforas, visualizando o direito como encarnação da justiça.

Entre os mitos e metáforas da justiça, é comum a simbologia desta relacionada à figura feminina, que não é deficiente visual, pois dizem que na Grécia antiga ela era representada de olhos abertos, mas que foi vendada pelos romanos, no intuito de aguçar-lhe a prudência do saber ouvir.

Sobre essa simbologia, costumo brincar com meus alunos, lembrando que para o pensamento machista, a justiça sendo mulher, de olhos vendados, e com uma espada na mão, é uma temeridade. Mas faço questão de lembrar que o ideal de justiça é mesmo a de uma justiça feminina, talvez menos distante da justiça divina, que cuida dos lírios do campo e faz cair a chuva sobre justos e injustos, uma justiça mais próxima das necessidades da vida, sem tanta complicação que costumamos inventar no âmbito forense, uma justiça que não se limite ao culto da lei, nem se preocupe apenas em prolatar sentenças de estilo rebuscado após o suplício de uma via crucis procedimental.

Um bom exemplo da justiça feminina é a narrativa extraída do livro Os parceiros invisíveis, de John A. Sanford, que cito em meu livro Direito, mito e metáfora. Trata-se da história de uma mulher, que publicou um anúncio num jornal, de venda de um Porsche novinho em folha, pelo preço ínfimo de setenta e cinco dólares:

Um homem leu o anúncio e entrou em contato com a mulher. “Tenho somente um cheque”— contam que ele disse a ela. “Está ótimo”— respondeu a mulher. Admirado e deliciado com a sua sorte, o homem deu-lhe o cheque e saiu com o Porsche; sua consciência, porém, começou a perturbá-lo e ele voltou a procurar a mulher para dizer-lhe: “A senhora sabe qual é o valor deste carro?” “Oh, claro que sei”— respondeu ela. “Então, por que está a senhora vendendo-o para mim somente por 75 dólares?” Bem — replicou ela —; o problema é o seguinte: ontem meu marido viajou para a Europa com a sua amante e me disse: Venda o Porsche por favor e mande-me o cheque.” Esta é a justiça feminina. A essência dela? Seu marido recebeu exatamente o que merecia.

Comentários

  1. Ilustre mestre e amigo Antônio Cavalcante, uma grande satisfação em descobrir suas linhas acadêmicas neste blog, vou indica-lo aqui na FIP e Facisa aos meus alunos este excelente canal de reflexão nas redes sociais. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Belo texto!
    Bastante poético. Bastante reflexivo.
    É díficil encontrar um conceito de justiça. Cada pessoa, devido as ideologias políticas, religiosas, formação cultural, tem um conceito próprio.
    Penso no caso da mulher que vendeu o carro. Será que o marido dela vivia feliz com ela? Será que ele não fugiu de casa por encontrar na amante uma mulher que o amasse de fato? Será que ele ficando em casa, não indo pra França, coisas piores não poderiam acontecer, tipo brigas e, quiçá, um assassinato???
    Enfim, até a idéia de dar a cada um o que é seu, é muito relativa.
    Esse texto me fez refletir um pouco...
    Muito bom mesmo.

    ResponderExcluir
  3. Obrigado, Joel. A intenção é mesmo provocar a reflexão. Um grande abraço.

    ResponderExcluir
  4. Marcelo, obrigado pelo incentivo. Um grande abraço.

    ResponderExcluir
  5. Saudações Antônio! Passei seu blog para alguns ex-alunos seus, contemporâneos meus no curso de Direito (UEPB), estão encantados, uma delas Silvania, hoje policial civil. Agradeço-lhe pelo interesse no meu livro, ele pode ser adquirido neste link: http://www.protexto.com.br/livro.php?livro=334

    Abraço!

    ResponderExcluir

Postar um comentário