E agora, Maria? (Parte II).


Agosto de 1999: eu, Juiz Presidente da então Junta de Conciliação e Julgamento (JCJ) de Picuí, publiquei no boletim da nossa Associação de Magistrados (AMATRA XIII), o texto E agora, Maria?, que agora reconto de forma livre e resumida:

Maria foi merendeira de uma escola municipal na zona rural, durante quase doze anos. Fazia quase de um tudo: carregava água, preparava a merenda e varria a sala de aula -- a única em que estudavam cerca de quinze alunos, todos misturados, da alfabetização ao segundo ano. Não fez concurso, pois na época não precisava; o emprego foi arranjado pelo marido, correligionário do prefeito:

-- Seu Prefeito, arrume um emprego pra minha mulher... pelo menos de professora... De professora!?... É certo que algumas delas só tinham o ginásio, mas Maria, nem o primário completo tinha.

-- Bem, de professora, não, que a vaga já foi preenchida, mas pode ser de merendeira.

Maria recebia menos que o salário mínimo, mas não se queixava, pois o serviço era perto de casa. A vida ia seguindo normalmente, até que aconteceu o inesperado: a oposição no poder e Maria, no olho da rua. O marido foi procurar o ex-prefeito, e deste recebeu o conselho: -- bote na Junta! Um doutor, amigo do ex-prefeito aceitou a causa dos demitidos: mais ou menos trezentos e cinquenta.

-- Ôba! Comemoraram os Juízes Classistas. Este ano as sessões estão garantidas.

Dia de audiência. Maria entra na sala e vê três homens distintos na cabeça da mesa. O do meio, de capa preta. Deve ser o doutor juiz; os outros quase não falam, pensa ela. Juiz e advogados dizem um palavreado que ela não entende muito bem. O juiz lhe faz algumas perguntas e ela conta como tudo se passou. Mais outro palavreado e termina a audiência. O resultado, segundo é informada, vai sair na semana seguinte; e sai: uma sentença mais ou menos procedente. E Maria, toda esperançosa, acha que vai receber logo seu dinheiro. Seu advogado, porém, explica que a coisa não é assim tão ligeira. O processo ainda vai para o Tribunal e pode demorar um pouco. É ter paciência e esperar.

Passa-se mais de um ano. Sabe como é: recurso para o TRT, depois embargos e agravo... mas finalmente Maria recebe um recado do mensageiro do posto telefônico:

-- É pra receber o dinheiro? Pergunta Maria.

-- Não, o doutor advogado disse que era pra ir à Junta bater umas xerox.

Maria toma dinheiro emprestado, pega o ônibus e vai à Junta. Depois de bater as cópias, pergunta ao funcionário: Moço, e agora, quando é que o dinheiro sai? O funcionário explica que as cópias eram para o precatório e que ainda demora um pouco para chegar o dinheiro. É ter paciência e esperar.

Mais de dois anos depois:

-- Doutor! Tem uma senhora querendo falar com o senhor. Eu já expliquei a ela o andamento do processo, mas ela insiste em falar com o juiz.

-- Mande-a entrar. Maria entra, digo-lhe para sentar e pergunto qual o problema.

-- Doutor juiz. Já tem mais de cinco anos que entrei com essa questão. Uma colega minha disse que o dinheiro da prefeitura estava para ser bloqueado para pagar a gente. Mas até agora, nada. Meu advogado disse que ainda vai demorar. Será que ele está me enrolando? O moço aqui da Junta falou de uns precatórios lá em São Paulo, que parece que o Tribunal de Brasília mandou paralisar tudo. Eu estou quase perdendo a esperança, e queria ouvir a explicação da boca do juiz. Me diga a verdade, doutor, quando é que meu dinheiro sai?

Como as coisas mudaram desde a publicação daquele texto. Apesar dos pesares, há mais cuidado com a contratação de servidores mediante concurso, com o pagamento dos salários, com a melhoria dos profissionais de educação. O pagamento de precatórios não está paralisado. Mensageiros e postos telefônicos, eles ainda existem? Em nossa Justiça, não há mais Juntas, Classistas, cópias para precatório, nem processo de papel existe mais. No entanto, toda vez que a resolução de um processo demora mais do que o razoável (e resolução do processo não é palavreado bonito, mas dinheiro no bolso), é como se eu estivesse ouvindo Maria perguntar: -- Me diga a verdade doutor, quando é que meu dinheiro sai?

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