Justiça ao ar livre, poesia na audiência e a inocência de Maria.


(texto enviado para o projeto para não esquecer – TRT13).

Juiz de interior, por circunstância e vocação, tenho tido a sorte da existência sob um ritmo de vida menos estressante que o das grandes cidades. Não que por estas bandas não se tenha trabalho a fazer. Ele existe, e existe em abundância. Mas não há tanta sofreguidão nos deslocamentos pelos espaços urbanos, e a coerção do tempo, que transforma vida em corre-corre, aqui é menos avassaladora que a metropolitana.

O compasso mais cadenciado da vida também tem sido oportuno para que eu possa receber as pessoas que procuram se socorrer da Justiça do Trabalho, e com elas conversar mais detidamente, seja em audiência, no gabinete ou na rua. Ao mesmo tempo, permite-me ruminar experiências edificantes que tenho vivido nestes anos, algumas delas que bem merecem fazer parte das histórias para não esquecer.

Permita-me contar três episódios, que se passaram na cidade de Taperoá. Daquela cidade, em que trabalhei em meados dos anos noventa, guardo boas recordações, como também preservo na mente e no coração outros bons momentos vividos em Monteiro, Itaporanga, Picuí e Areia, onde também atuei, antes de vir para minha Guarabira. Mas vamos às histórias.

Justiça ao ar livre

O ideal de um palácio de justiça, segundo Calamandrei, seria ainda o do bom tempo antigo:

Um carvalho e, à sombra dele, o juiz que ouve as razões dos que serão julgados; em volta, o povo que assiste em círculo, sem biombos e sem barreiras divisórias. Justiça ao ar livre, à luz do sol, sem portas fechadas e sem corredores secretos.[1]

Meus tempos em Taperoá (menos antigos que os de Calamandrei), ainda foram os tempos em que havia juiz classista e máquina de datilografia. Desta cheguei a sentir falta, nos primeiros meses após a implantação do computador na realização de audiências; não exatamente da máquina, mas do estrepitar datilográfico que intervalava nossas falas, e cujo emudecimento causava, num primeiro momento, um vazio sonoro na sala de audiência. Dos classistas também senti falta, não exatamente da sua função, mas do acolhimento caloroso, próprio da boa gente de Taperoá.

O prédio da Junta de Conciliação e Julgamento era novinho em folha, e mesmo não sendo um ideal de palácio de justiça, como imaginava Calamandrei, tinha ao lado uma árvore frondosa. E foi debaixo dessa árvore, sem nenhuma premeditação, que fizemos uma audiência ao ar livre, à luz do sol, sem portas fechadas.

Eu havia chegado a Taperoá há pouco tempo. Certo dia, após as primeiras audiências, fui informado que para a sessão seguinte o reclamante tinha chegado numa ambulância, e não tinha condição de se locomover até o lugar onde estávamos. O advogado dele não havia pedido adiamento da audiência, nem qualquer outra providência; seu constituinte queria mesmo ser ouvido naquela oportunidade. Sem qualquer hesitação, deslocamos uma mesinha para a máquina, uma cadeira para o datilógrafo e, de repente, a tenda da Justiça estava armada debaixo da árvore. Naquele lugar aprazível, reunimo-nos para ouvir o que nos tinha a dizer o reclamante, deitado na maca de uma ambulância. Depois de interrogado, o reclamante assinou a ata e foi liberado, e nós voltamos à sala de portas fechadas, para continuar a audiência.

Não lembro o nome das partes, muito menos o número do processo. Um dos classistas chegou a comentar: pena que não trouxemos uma máquina fotográfica para registrar a audiência. De fato, foi uma pena. No entanto, mesmo sem o registro fotográfico, aquele fato nunca foi apagado de minha memória. Aquela árvore, creio eu, nunca mais serviu de abrigo para outra audiências, mas deve estar lá, como testemunho de um momento singular de realização de justiça ao ar livre.

Poesia na audiência

Nestes meus tempos como juiz, tenho tido, de modo geral, um bom convívio com advogados. Cheguei a escrever um artigo em homenagem a eles, intitulado Socorro, um advogado: breves considerações sobre a ética do advogado, que pode ser acessado no site do jus navigandi. E em Taperoá, tive o prazer de manter contato mais próximo com dois advogados, dos quais guardo boas lembranças: Dr. Fenelon Medeiros e Dra. Celeide Farias.

Doutor Felenon, eu já havia conhecido como chefe de Departamento do Curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Lembrava dele como integrante da comissão julgadora para escolha do orador de nossa turma de Direito, quando eu e o colega Romero Carneiro, hoje também juiz, participamos da disputa. Já a doutora Celeide, esta eu só conheci em Taperoá.

Dr. Fenelon e Dra. Celeide atuaram em muitos processos na Junta de Taperoá; ele, de um lado; ela, do outro lado da mesa. Quando chegamos ao final de uma série grande de audiências, envolvendo processos nos quais ambos atuavam, ocorreu um fato que merece ser lembrado. Terminadas as sessões do dia, um deles (acho que foi a advogada) pediu permissão para recitar um poema, pedido prontamente deferido. O outro, não se fazendo de rogado, também pediu a palavra para recitar outro poema, no que foi igualmente atendido. Foi assim, sem nenhum planejamento prévio, que a poesia invadiu a sala da justiça trabalhista em Taperoá, em pleno período de audiências. E tudo terminou em aplausos.

A inocência de Maria

Doutor Fenelon era advogado de Maria. Sempre muito espirituoso, antes da audiência dela, ele me alertou:

─ Doutor, a próxima reclamante se chama Maria. Ela pode parecer um pouco agitada, mas não se preocupe, pois ela está medicada. Ela é de uma região perto daqui, que dá muito doido. Eu, inclusive, sou de lá.

Não pude conter o riso, com aquela frase impagável do advogado, mas logo me recompus para receber Maria, com a seriedade que se espera de um magistrado.

Feito o pregão, Maria entrou na sala. Cumprimentei-a, como de praxe. A outra parte, com a sua advogada, já estava no recinto, uma vez que havia participado da audiência anterior. Maria estava tranquila, e respondeu sem problemas as poucas perguntas que lhe foram feitas. Todavia, seu semblante não negava a falta de compreensão sobre o que acontecia na audiência. Tentei imaginar o que se passava na cabeça daquela mulher, bombardeada por um discurso jurídico que ela não conseguia alcançar, mas que se desenrolava em função de um direito que era dela. Mas Maria parecia feliz.

Terminada a audiência, a advogada da outra parte veio falar com Maria, dirigindo-se a ela com gestos e palavras afáveis, o que a deixou ainda mais feliz. A advogada retirou-se, e Maria ficou mais um pouco, conversando com seu advogado. E foi logo perguntando:

─ Doutor Fenelon, quem é aquela doutora tão educada, que me tratou tão bem? Ela é a promotora?

O advogado, então, respondeu quase num sussuro:

─ Não, Maria. Aquela doutora é advogada contra você.

E Maria, com a inocência abalada por aquela inesperada revelação, só conseguiu balbuciar uma palavra sobre a doutora que lhe despertara tanta admiração:

─ Falsa!

Aquele episódio me levou a escrever um texto, publicado no boletim da Amatra XIII, em agosto de 1999, intitulado E agora, Maria? O episódio não é narrado naquele texto. Mas a inocência de Maria serviu de inspiração para falar sobre esperanças e desesperanças de pessoas que batem às portas da Justiça do Trabalho, para fazer valer direitos que são delas, mesmo compreendendo quase nada do falar e do agir dessa Justiça, na tutela desses direitos.



[1] CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 303.



Comentários

  1. Estimado Professor,

    Antes de tudo, permita-me assim chamar, sem as peias da formalidade da toga, que diga-se, não implica em menos respeito, pelo contrário, pois, assim que sempre o verei, como O MESTRE, sempre preparado, didático, ético, gentil no tratar, respeitoso e sempre pronto para "dá de beber", aos seus neófitos ávidos e sedentos do conhecimento jurídico, que daquela "fonte", emanava com tanta naturalidade.
    Do texto em apreço, além de tudo de bom que nele contém, uma frase me chamou particular atenção: "...com a seriedade que se espera de um magistrado." (sic) Que de logo, me fez relembrar as poucas audiências que tive a honra de fazer presidida, desta feita, pelo Magistrado ANTÔNIO CAVLACANTE; E nestas poucas vezes, embora de fato, a seriedade fosse a tônica da audiência, no entanto, esta (a seriedade), era a apenas, uma coadjuvante, onde na verdade se tinha como principais elementos, o respeito, que não se impunha em decorrência da função, mas sobretudo, do saber, da educação e da polidez, que eram isonomicamente aplicadas, tanto ao empregador quanto ao mais simplório e rústico empregado. E claro, como não poderia ser diferente, tais situações, fizeram crescer em mim, ainda mais a admiração, que desde há muito já nutria. Logo, da sua parte, não é de se estanhar, uma audiência à sombra de uma árvore, que só corrobora, a sua simplicidade e mais notadamente, a forma, de sacerdócio que encara a Magistratura. Grande abraço !

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