De botocudo e joalheiro


“Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.” Esta máxima de Brás Cubas revela um pouco da genial ironia de Machado de Assis. Também faz pensar num sentimento que sói aparecer nas relações interpessoais: o preconceito. Preconceito, ensina o Aurélio, é conceito formado antecipadamente, ideia preconcebida e, por extensão, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões etc.

Tome-se o exemplo dos índios no Brasil. Nos tempos de Cabral, compunham uma população de cerca de um milhão de pessoas, e que alguns estudiosos estimam em cinco milhões (só para se ter uma idéia, em Portugal, na época, viviam pouco mais de um milhão de pessoas). Para os diversos grupos tribais, espalhados em aldeias de trezentos a dois mil habitantes, o mundo, no dizer de Darcy Ribeiro, era um luxo de se viver:

(...) tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes, que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta gente aqui viesse ter. Na sua concepção sábia e singela, a vida era dádiva de deuses bons, que lhe doaram esplêndidos corpos, bons de andar, de correr, de nadar, de dançar, de lutar. Olhos bons de ver todas as cores, suas luzes e suas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir vozes estridentes ou melódicas, cantos graves e agudos e toda a sorte de sons que há. Narizes competentíssimos para fungar e cheirar catingas e odores. Bocas magníficas de degustar comidas doces e amargas, salgadas e azedas, tirando de cada qual o gozo que podia dar. E, sobretudo, sexos opostos e complementares, feitos paras as alegrias do amor.

Mesmo sem o mesmo nível técnico dos europeus, os índios detinham considerável acervo de informações nas áreas de ecologia, zoologia, botânica, geologia, anatomia, só para citar algumas, o que era indispensável à sobrevivência nestas terras tropicais. Chegavam a sobrepujar o europeu em certos campos do saber, a exemplo da fitoterapia ministrada pelos pajés. É provável, escreve Gilberto Freyre, “que nas mãos de um curandeiro indígena estivesse mais segura a vida de um doente, no Brasil dos primeiros tempos coloniais, do que nas de um médico do reino estranho ao meio e à sua patologia.”

Todavia, aos olhos dos colonizadores, aquela gente era atrasada e preguiçosa. Vivia uma existência inútil, sem nada “produzir”, preconceito tão forte que chegou aos nossos dias. O antropólogo Everardo Rocha, pesquisando livros didáticos de história do Brasil, constatou que muitos deles mostram os índios como ineptos para o trabalho “produtivo”, por serem “naturalmente” indolentes. Ora, comenta aquele autor:

Como aplicar adjetivos tais como ‘indolente’ e ‘preguiçoso’ a alguém, um povo ou uma pessoa que se recuse a trabalhar como escravo, numa lavoura que nem sequer é a sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer é seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é, no mínimo, sinal de saúde mental.

Na Campanha da Fraternidade de 2002, sobre fraternidade e povos indígenas, fomos convidados a construir uma terra sem males. Um dos maiores, do qual não conseguimos nos livrar, é o preconceito, seja contra o índio, contra o negro, contra o nordestino, enfim, contra o diferente. Pois do preconceito podem derivar muitos outros males. Por isso é tão importante sairmos do mundo centrado no eu para irmos ao encontro do outro. E assim, quem sabe um dia, compreenderemos que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau.

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