Sucupira, ontem e hoje.



Odorico, o Bem-Amado é o título da peça de teatro, escrita por Dias Gomes e publicada em 1962, mesmo ano em que o filme O Pagador de Promessas, baseado em outra obra do mesmo autor, ganhou a Palma de Ouro no festival de Cannes. Na peça, Odorico Paraguaçu candidata-se a prefeito de Sucupira, tendo como slogan de campanha “vote num homem sério e ganhe seu cemitério”, já que a cidadezinha não dispunha de um campo-santo. Todavia, chegando à Prefeitura, não consegue arranjar defunto para inaugurar a obra. Depois de frustradas tentativas de alcançar seu objetivo, Odorico simula um atentado contra ele mesmo, finge-se de morto e, depois de reunido o povo para seu enterro ao som da banda de música, ergue-se apoteoticamente como se tivesse recobrado a vida, sendo ovacionado como “o bem-amado”. Comenta-se que, no contexto dos anos sessenta, aquela comédia farsesca integrava o ideal de intelectuais de esquerda, que tentavam conscientizar o povo, por meio da cultura popular.

Em 1973, a peça virou telenovela. Nesta, surgem novos personagens, a exemplo do dentista Lulu Gouveia, vereador de oposição ao prefeito, e Chica Bandeira, que assume o cargo de delegada, no lugar do ex-cangaceiro Zeca Diabo. Mas não apenas a história e os personagens se ampliam; o sentido da alegoria ganha nova dimensão. Nos anos setenta, a sátira às práticas comuns às oligarquias resvala na crítica ao regime ditatorial, sustentado em parte nos “bem-amados” que dominavam a política nacional.

O sucesso da novela fez com que O Bem-Amado se transformasse em seriado de TV. Este foi ao ar do final dos anos setenta a meados dos anos oitenta, incorporando às peripécias do prefeito Odorico episódios relacionados às “atualidades” da época, como abertura política, combate à inflação, poluição ambiental, greves e tráfico de drogas. O prefeito chegou a fazer viagens internacionais. Em Paris, ao lado do secretário Dirceu Borboleta, depositou flores no túmulo de Napoleão; em Roma, lançou pedras no Vesúvio. Foi até para Washington, levar a proposta ao presidente dos Estados Unidos, de transferir a sede da ONU para Sucupira, cidade menos vulnerável do que Nova Iorque, diante da ameaça dos mísseis da Guerra Fria.

Agora O Bem-Amado ganhou as telas do cinema. No filme, Odorico é mais urbano; as irmãs Cajazeiras, mais peruas que beatas; e o enredo, mais apimentado quanto a sexo, corrupção e escândalo. Para o diretor Guel Arraes, a figura de Odorico como um coronel de paletó branco seria uma imagem arcaica para os dias de hoje, em que nem todo intelectual é de esquerda, e a esquerda não é tão de esquerda quanto parecia nos anos sessenta, setenta e oitenta. Portanto, um novo Odorico e uma nova Sucupira propiciariam uma reatualização (quem preferir leia aggiornamento) da alegoria concebida originalmente por Dias Gomes. Penso, porém, que a Sucupira em que vivemos, ainda guarda semelhanças com a de outrora.

O estereótipo do governante “bem-amado” permanece muito forte entre nós. A esse respeito, José Murilo de Carvalho nos revela um paradoxo na história da cidadania no Brasil. Nos períodos ditatoriais, como o Estado Novo e o regime militar, houve restrição de direitos civis e políticos e, ao mesmo tempo, ampliação de direitos sociais que, ainda hoje, costumam ser vistos não como direitos, e sim como bondades dos governantes, o que contribui para a utilização da política de assistência social como moeda eleitoreira.

E as festas populares patrocinadas com dinheiro público? Em Sucupira, elas contavam com a Lira Sucupirana atacando seus dobrados, os foguetórios de costume, e Nezinho do Jegue, agitando o chapéu acima da cabeça do jumento e gritando: ─ Viva Odorico Paraguaçu! Desde os romanos, com a política do pão e circo, utilizada para desviar a atenção das massas populares de suas verdadeiras necessidades, a espetaculosidade tem sido uma constante no exercício do poder, e nós não conseguimos ainda nos livrar dela em nossa Sucupira do século XXI, em que as campanhas eleitorais são feitas mais de arrastões que de discussões sérias sobre as propostas dos candidatos.

Mas não é só. Somos também Nezinhos, quando escolhemos mal quem vai nos governar ou fazer a lei em nosso nome, e depois falamos mal daquele que nós mesmos escolhemos. Nezinho do Jegue, geralmente quando estava bêbado, em vez de aclamar o “bem-amado”, costumava gritar: ─ Sem-vergonho! Ladrão de cavalo! Exploradô do povo! Morra Odorico!

Não devemos esquecer, ainda, que um governante pode ser ao mesmo tempo “pai dos pobres e mãe dos ricos”, como alguns costumavam dizer de Getúlio. Além disso, seja em democracias ou ditaduras, governos de direita ou esquerda, monarquias ou repúblicas, o culto aos “bem-amados” pode contribuir para a perpetuação de oligarquias. E como observava Machado de Assis, muito antes da fundação de Sucupira, o problema do Brasil não é a República nem a Monarquia. É a oligarquia absoluta.

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