Ai d’eu sodade


No livro Bem-vindo ao Direito do Trabalho, valho-me do ABC do preguiçoso (Ai d’eu sodade), música de domínio público interpretada por Xangai, para iniciar o capítulo relativo a Segurança e Saúde no Trabalho. Também faço menção ao seguinte trecho de um discurso de Alexandre Marcondes Filho, Ministro do Trabalho do governo Vargas:

A vida humana tem, certamente, um valor econômico. É um capital que produz e os atuários e matemáticos podem avaliá-lo. Mas a vida do homem possui, também, um imenso valor afetivo e um valor espiritual inestimável, que não se podem pagar com todo o dinheiro do mundo. Nisto consiste, sobretudo, o valor da prevenção em que se evita a perda irreparável de um pai, de um marido, de um filho, enfim daquele que sustenta o lar proletário e preside os destinos de sua família. A prevenção é como a saúde. Um bem no qual só reparamos quando acidente e a moléstia chegam.

Relendo essa passagem, me veio à mente uma história que li num jornal de domingo, há pouco mais de dez anos. Eram quatro trabalhadores do Curimataú paraibano; todos casados. Um deles com pouco mais de cinquenta anos de idade; os outros tinham entre trinta e trinta e três anos. Segundo a matéria, os quatro morreram vítimas de doença pulmonar adquirida no trabalho em minas de quartzo, mesma moléstia que transformava em pó os pulmões dos mineiros latino-americanos desde o tempo em que as ruas de Potosí eram ladrilhadas de prata.

Sem deixar explícito o nexo etiológico entre as condições de trabalho e a causa mortis dos quatro mineiros, o texto trazia a opinião de um técnico em segurança do trabalho. Segundo ele, o mais comum em casos como aquele era que o empregador se preocupasse apenas em disponibilizar os equipamentos de proteção individual, e, nesse aspecto, cumpriam a lei, sem, contudo, fiscalizar e cobrar o uso dos EPI’s pelos trabalhadores que, por achar incômoda a sua utilização, terminam por não tomar os devidos cuidados, o que pode custar-lhes a vida.

Pelo que me consta, até hoje não foram apontados os verdadeiros responsáveis pelos óbitos: teriam sido os donos das minas? Mas, como referiu o técnico, eles até que observavam a lei. Seria então a lei deficiente, ou a fiscalização, ineficiente?

Uma coisa, porém, é certa: lá se foram mais quatro pais de família brasileiros, coisa que talvez não abale nossas estatísticas, afinal, que representam para elas quatro viúvas a mais ou a menos? Elas, as viúvas, que procurassem alguém ou alguma coisa para enfiar a carapuça, pois a saída menos incômoda, em casos como esse, tem sido atribuir a responsabilidade à falta de cuidado das próprias vítimas, mudas que estão no além-túmulo.

Perdoem-me pela exumação dessa história. Se o faço, porém, é no propósito de lembrar que para a preservação da saúde e segurança do trabalhador não bastam a lei e a oratória, por mais que esta seja bonita de se ouvir, feito a do finado Ministro — que Deus o tenha! (Não só ele, mas também os quatro mineiros fulminados pelo “pó da morte”) — pois, como diz o ABC do preguiçoso, “trabalhar é muito bom, num é minha ‘véia’, mas é um tanto ‘arriscoso’. E ‘ai d’eu sodade.”

Comentários

  1. "Seria então a lei deficiente, ou a fiscalização, ineficiente?"

    Quem deve fiscalizar? O Estado ou o empregador?
    Nem sempre o empregador pode fiscalizar seus funcionários. Algumas vezes, contrata-se um outro funcionário para fazer o serviço de fiscalização.
    Mas suponhamos que o empregador disponibiliza todos os EPI's exigidos por lei e mesmo assim um de seus funcionários sofre um grave acidente no trabalho. De quem é a culpa?
    a) do funcionário "irresponsável";
    b) do patrão que não estava no momento para fiscalizar;
    c) do funcionário fiscalizador;
    d) do Estado que cria leis, mas não garante sua aplicação

    Há quem diga que a solução seria submeter os funcionários a um curso de utilização de EPI's e fazê-los assinar algum documento comprovando o treinamento. A partir daí toda lesão causada pela falta de uso do EPI seria responsabilidade do funcionário.
    Seria essa uma solução justa?

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