Nas horas de Deus, amém.



Há uma coisa que se esquece muito no Brasil, é a sorte do povo: do povo, que não é o grande proprietário, o capitalista riquíssimo, o nobre improvisado, o bacharel, o homem de posição. Fala-se todo o dia de política (...) Ora-se a propósito de tudo, menos a propósito do povo.

A citação acima, embora soe familiar e atual, faz parte das Cartas do Solitário, escritas por Tavares de Bastos no ano de 1861. Nelas, o autor dirige uma queixa à imprensa e aos homens de seu tempo, chamando a atenção para o fato de que no Brasil se escrevia a respeito das grandes potências da época, mas nada a respeito do povo; que os eruditos estudavam a entomologia das borboletas e a geologia dos sertões, mas não conheciam de perto o mundo em que o povo vivia; que os jornais, em lugar de repercutir as questões sociais, agarravam-se à estéril política dos partidos.

Nesse povo esquecido estavam tanto os escravos quanto pobres “livres”, mas que viviam como vassalos dos proprietários de terra. Os da zona rural, de vez em quando arranjavam serviço semi-escravo no tempo da colheita; os da cidade, quando não arrumavam biscate, sobreviviam, no mais das vezes, de pequenos furtos ou esmolas.

E a situação não melhorou com a abolição da escravatura, pois esta não foi acompanhada de qualquer plano para melhorar as relações de trabalho no Brasil. Por isso, a condição de muitos “ex-escravos”, ficou ainda pior do que antes, pois foram expulsos das fazendas com uma mão na frente e outra atrás, sem indenização ou assistência, sendo jogados nas periferias das cidades, onde os esperavam a exclusão e o preconceito.

A bem da verdade, mesmo antes da Lei Áurea, muitos negros deixaram de ser escravos, sem que isso significasse o início de uma vida digna para eles. Na época da Guerra do Paraguai houve grande dificuldade de recrutamento de soldados entre os jovens brasileiros, o que fez com que o governo convocasse os escravos para a campanha militar. Como recompensa, prometiam trocar-lhes os grilhões por uma carta de alforria. E muitos deles, egressos do campo de batalha como mutilados de guerra, engrossavam as fileiras dos inválidos da Pátria, cidadãos “livres” apenas para esmolar nas ruas, assim imortalizados na poesia popular:

E em breve, em breve Silvina

Guiando Anselmo, seu bem,

Assim cantava esmolando,

Nas horas de Deus, amém:

─ Ao meu esposo uma esmola...

Ao mutilado um vintém!

E quem amar sua pátria

Um hino lhe dê também! ─

Ai, muita gente chorava

Nas horas de Deus, amém.

Estas décimas plangentes do poeta Juvenal Galeno podem ser entoadas como clamor do povo esquecido, que não é o capitalista riquíssimo, nem o “homem de posição”. Pois nessa pátria sem hino, muita gente ainda chora, nas horas de Deus, amém.

Comentários

  1. Eu lembrei da Música de Zé Vicente quando vi o título. Mas nada tem a ver com a canção desse expoente da religiosidade popular.
    O povo no Brasil só existe nos discursos dos políticos. Agora, de 2003 para cá, começa a ter existência própria, a ter uma certa atenção, mas ainda insuficiente.
    Diante de tudo isso, parafraseio Euclides, o povo, é antes de tudo, um forte!
    Belo texto!
    Abraços!

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