Mãos sujas



Na peça de teatro “As mãos sujas”, Jean-Paul Sartre apresenta o choque entre as visões políticas pragmática e idealista. Hugo, jovem idealista, recebe ordem de seu partido para matar Hoederer, líder da mesma facção, considerado traidor dos ideais revolucionários, por ter feito conchavos com os adversários. Para cumprir sua missão, ele vai trabalhar como secretário de Hoederer. Porém, aproximando-se deste, passa a admirá-lo, embora discorde de sua estratégia política. A política, segundo Hugo, é uma ciência capaz de demonstrar que uma pessoa tem razão e que as outras se enganam. Para ele é inaceitável que um partido revolucionário chegue ao poder à custa de traficâncias, e que Hoederer se utilize do partido para fazer uma política colaboracionista, afrontando o programa partidário de implantação do socialismo por meio da luta de classes. O jovem, que não esconde sua opinião diante do chefe, ouve deste o seguinte:
HOEDERER: (...) Como tu prezas a tua pureza, meu filho! Que medo que tens de sujar as mãos! Pois bem, fica puro! Quem é que aproveitará com isso, e porque é que vem então meter-te conosco? A pureza é uma ideia de faquir e de monge. Vocês, os intelectuais, os anarquistas, utilizam-na como um pretexto para não fazer nada. Não fazer nada, ficar imóvel, apertar os cotovelos ao corpo, usar luvas. Pois eu tenho as mãos sujas. Até aos cotovelos. Mergulhei-as na merda e no sangue. E depois? Imaginas que se pode governar inocentemente?
Contrariando sentimentos íntimos, Hugo mata Hoederer, é preso, e, liberto do cárcere, procura Olga, militante do partido. Mas a política deste havia mudado radicalmente. Passaram a defender o colaboracionismo de Hoederer, cuja imagem de traidor foi mudada para a de herói. Por isso seu assassino deveria ser apagado da história, o que faz de Hugo um estorvo para a cúpula do partido, que resolve eliminá-lo. Olga, então, pede um tempo aos companheiros para tentar convencer Hugo a se submeter à nova orientação partidária e viver na clandestinidade. Hugo, porém, não aceita a proposta:
HUGO: (...) Escuta: eu não sei porque é que matei o Hoederer, mas sei porque o devia ter morto: porque ele impunha uma política má, porque mentia aos camaradas e porque fazia o Partido correr o risco de apodrecer. (...) Na prisão, julgava que vocês estavam de acordo comigo, e isso dava-me forças; sei agora que ninguém pensa como eu, mas não mudarei de opinião por causa disso.
Mesmo alertado que os companheiros vão matá-lo, e que isso pode ser evitado se ela lhes garantir que Hugo é “recuperável”, este não volta atrás:
HUGO, avançando para a porta: Eu ainda não matei o Hoederer, Olga. Ainda não. Mas vou matá-lo agora. A ele e a mim também.
(Batem à porta novamente.)

OLGA, gritando: Vão-se embora! Vão-se embora!
(Hugo abre a porta com um pontapé.)
HUGO, gritando: Não recuperável!
(Cai o pano).

Não é de hoje que o jogo da política é jogado tanto com cabeças idealistas quanto com mãos sujas. O reinado pacifista de Salomão não se consolidou sem antes ser banhado no sangue dos partidários de Adonias. E ainda que não tenha a dramaticidade da peça de Sartre, o teatro da política ainda é cheio de cenas de dissimulação e boa-fé, de corrupção e decência, de pragmatismo e idealismo.
Não rezo na cartilha existencialista de Sartre; não concordo com a “pureza” de Hugo, capaz de matar por ideologia partidária, nem com o pragmatismo de Hoederer, para quem “a Revolução não é uma questão de mérito, mas sim de eficácia”, pois o “Céu não há.” Mas não há como negar que, no palco da política, não se pode ter as mãos totalmente limpas. Pois o papel dos personagens, inclusive o de cada um de nós, depende de nossas escolhas. Lavando as mãos, Pilatos não as tornou mais limpas que as de Hoederer. A sorte é que, mesmo não sendo possível governar ou ser governado inocentemente, sabemos que nem a história da salvação, conduzida pelas mãos imaculadas de Deus, dispensa as mãos sujas de mulheres e homens.

Comentários

  1. Ontem, assisti a palestra do prof.Renato Janine Ribeiro, postado pelo Café Filosófico (CPFL-videos), pela TV Cultura, e ele termina a própria mencionando esta passagem da peça de Sartre. Mas ele diz que o assassinato acontece não por causa política-ideológica, mas sim, porque vê seu interlocutor na cama com sua esposa. Um detalhe de muda um pouco a moral da peça. abç.

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  2. Como uso Sartre em muitos trabalhos, discuto a incoerência da coerência.

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