Ruim de urna


Estávamos em 1988, ano em que o povo brasileiro deu à luz a Constituição que ainda hoje nos rege. Sopravam os bons ventos do retorno à democracia, do desejo de restaurar liberdades e construir uma sociedade menos desigual. Eu, com meus vinte e poucos anos e prestes a terminar o curso de Direito, sonhava com um país de cidadania mais larga, condizente com o novo tecido constitucional.

Morávamos numa cidadezinha ─ e não tenham o diminutivo, aqui, na conta de termo depreciativo, mas denotativo e, ao mesmo tempo, carregado de sincero carinho ─ na qual, como sói acontecer em muitas outras cidades, a política partidária, tal qual uma lapinha, era uma disputa entre dois cordões, não necessariamente o azul e o encarnado. Resolvemos, então, fundar um terceiro cordão, que se auto-enxergava mais ético e de esquerda. Nada de aliança com os detentores do poder. Influenciados pela Teologia da Libertação, imaginávamos que o mundo seria melhor quando o menor que padece acreditasse no menor. Daí, para nós era absurdo, por exemplo, um pobre votar num L-A-T-I-F-U-N-D-I-Á-R-I-O (pureza ideológica ou ingenuidade política?).

Com a cabeça povoada de sonhos, acabei sendo candidato a prefeito, não dando ouvidos ao que cantava Raul Seixas, em cowboy fora da lei. Todavia, minha estreia nas urnas não foi muito animadora: menos de cinco por cento dos votos válidos, numa disputa acirrada e polarizada entre os dois cordões que o eleitorado efetivamente levava em conta (quem quiser conferir, basta acessar o site do TRE).

Quatro anos mais tarde, ainda escaldado pelo insucesso eleitoral, lá estava eu, novamente candidato. Não mais a prefeito, e sim a vereador, e por outro cordão, de coloração diferente. Volúvel! Sei que alguns assim me julgaram na época. Mas o fato é que continuávamos na oposição ao grande líder político local (sempre fui do contra, em minha curta carreira de aprendiz de candidato), e, no meu caso, as razões da mudança, mais do que ideológicas, eram afetivas.

Meu pai era candidato a vice-prefeito do bloco dos contra, e o afastamento do meu trabalho em razão da candidatura acabou permitindo ─ sem que eu jamais pudesse imaginar que tudo fosse acontecer como aconteceu ─ que eu ficasse mais perto dele, nos últimos meses de sua vida. Pude, assim, acompanhar seus passos na campanha eleitoral, durante a qual ele veio a falecer, no sete de setembro mais sofrido de nossas vidas, dia em que até os clarins das bandas da cidadezinha emudeceram, em homenagem ao professor e maestro.

Só Deus sabe como arranjamos força para continuar a campanha daí em diante. Mas fomos até o fim. E jamais esquecerei o dia da eleição, em que mais uma vez pude, na intimidade inviolável da cabine eleitoral, depositar na urna o voto pelo projeto de mudanças da pequena urbe (que não deixava de ser o nosso orbe), com os olhos cheios de lágrimas e o coração sangrando de saudade de meu pai. Assim, a perda menor foi a das urnas, que me concedeu mais uma fragorosa derrota eleitoral.

Passados vinte e poucos anos de minha primeira experiência como candidato, tenho de admitir: não sou mesmo bom de urna. Eu quis a política partidária; ela é que não me quis. Contudo, não me arrependo de um dia ter por ela me enamorado, com todos os erros e acertos que fizeram parte desse affaire, nem de continuar tendo por ela certo fascínio, mesmo que este fique guardado no silêncio do coração, devido à natureza do ofício que me cabe exercer.

Se o ser humano é destinado a coexistir politicamente, a política partidária, entre tantas formas de se viver a política, dentro da qual todos nos movemos socialmente, continua sendo um dos instrumentos importantes para a construção da cidadania. É claro que algumas coisas na política partidária podem nos causar estranheza e indignação. Hoje em dia, os cordões azul e encarnado não são mais tão azul e encarnado como antes. Muita gente que cantava quem morre calado é sapo debaixo do pé do boi hoje entoa jingles de candidatos que antes eram esconjurados como latifundiários opressores.

Sei que os tempos são outros. Teologia da Libertação (que pena!) parece fora de moda, e frouxidão ética é confundida com amadurecimento político. Mas sei também que, apesar de tudo, nestes vinte e poucos anos, houve avanços no processo de inclusão de mais e mais pessoas no exercício dos direitos de cidadania, e parte desse avanço se deve à ação de idealistas enamorados da política. Esta constatação me ajuda a crer que o sacrifício de meu pai não foi em vão, mesmo que isso possa ser apenas um consolo para quem se reconhece ruim de urna, mas que nem por isso viu morrer dentro de si o sonho de construção de uma sociedade de cidadania alargada.

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