Pra começo de conversa.



(Introdução do livro Bem-vindo ao direito do trabalho).

Quando menino — lembro ainda a melodia —, ouvia uma canção bastante popular no Nordeste, que dizia mais ou menos assim:

Vamos dar valor a quem trabalha,

Vamos dar valor a quem dá murro

O burro é quem merece uma medalha,

O burro é quem trabalha

O burro é quem dá murro.

Luiz Gonzaga, o rei do baião, também entoou loas ao jumento. No ano de 1968, lançou uma música, composta em parceria com José Clementino, em que fazem uma apologia àquele laborioso animal, chamado de nosso irmão. Para tanto, invocaram o testemunho do Padre Vieira, que, segundo Gonzaga e Clementino, escrevera sobre a vida do asno, também cognominado de Bagre, Bó, Rodó, Jegue, Baba, Ureche, Oropeu, Andaluz, Marca-hora, Breguedé, Azulão, Alicate de Embau e Inspetor de Quarteirão.

Mas os elogios dos nordestinos não pararam por aí. São de Patativa do Assaré, os seguintes versos:

Meu caro amigo jumento

Que tanto sofre e padece,

Seu grande merecimento

Muita gente não conhece.

É tão grande o seu valô

Que o mais sábio professô

De conhecimento além

Nas coisas da facurdade,

Tarvez não diga a metade

Do valô que você tem.[1]

Os eruditos, porém, parecem não dar ouvidos aos trovadores nordestinos. Dizem que o ser humano é o único animal digno de trabalhar, na exata acepção da palavra. E crêem nisso piamente, como não me deixam mentir os ensinamentos do Santo Papa:

O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja atividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar de trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ela sua existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza.[2]

Essa crença não é fruto apenas de uma visão religiosa. Também faz parte do secularizado pensamento científico. Karl Marx, por exemplo, externa a convicção de que o trabalho humano não pode ser confundindo com o labor dos animais. Para ele:

...uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera.[3]

Pois bem: há muito tenho dado ouvido às canções entoadas por Luiz Gonzaga e por outros cantores populares do Nordeste, que fizeram seus elogios ao jumento — prazer que Marx não teve a sorte de desfrutar. Quanto ao Papa, é fato que ele teve oportunidade de ouvir pessoalmente o rei do baião e, segundo se conta, chegou a ser presenteado com um jumento, quando de sua primeira visita ao Brasil. Mas isso já foi depois de ter publicado a Encíclica sobre o trabalho humano. Por isso, no íntimo, sou tentado a crer que o burro é mesmo um animal trabalhador (pois se é até abençoado!). Além do mais, o animal humano, por mais que mergulhe nas águas profundas da ciência, não deixa de ser suspeito ao dizer que só ele tem capacidade de projetar o trabalho em sua mente. Pelo que consta, até hoje ninguém conseguiu embrenhar-se nos devaneios da aranha, nem devassar a arquitetura da abelha. Que o digam João do Vale e Luiz Vieira:

Deu meia-noite

A lua faz o claro

Eu assubo nos aro

Vou brincar no vento leste

A aranha tece

Puxando o fio da teia

A ciência da abeia

Da aranha e a minha

Muita gente desconhece.[4]

No entanto, creio ser melhor não cometer a heresia de duvidar da palavra do Sumo Pontífice, nem o desplante de questionar os credos da nossa ímpia ciência. Sendo assim, com o perdão dos mestres do meu Nordeste, curvo-me ao dogma de que o homem é o único animal que trabalha.

Com base nesse dogma, consagrou-se um princípio disseminado mundo afora: o de que trabalho não é uma mercadoria. Este princípio, estampado de cara na Declaração de Filadélfia, relativa aos fins e objetivos da OIT, tem sido declamado nos quatros cantos da Terra. Mas, como adverte Machado de Assis, “uma coisa é citar versos, outra é crer neles.” Por isso, não é de admirar que, nos dias de hoje, a despeito de toda evolução do Direito do Trabalho, e mesmo nos países que juraram observar as normas da OIT, ainda haja milhões de homens, mulheres e crianças que trabalham feito burros de carga, e, pior que o jumento, morrem sem receber qualquer galardão por isso.

Como se não bastasse, ainda há muita gente que parece querer riscar do mapa a legislação protetora do trabalho humano, conquistada historicamente a duras penas. A esse respeito, o professor Amauri Mascaro Nascimento[5] informa que existem alguns juristas espanhóis defendendo a reabsorção do direito individual do trabalho pelo direito civil, ou seja, pretendem enfiar o ovo de volta, cloaca adentro da galinha!

Pois é justamente sobre esse conflituoso mundo do trabalho e seu direito, o seu significado para a humanidade, um pouco de sua história, seus institutos e normas, que o convido a refletir comigo nas páginas a seguir.

Peço licença, porém, para falar sobre tudo isso enxertando a linguagem espontânea do povo ao discurso elaborado da doutrina jurídica. E o faço por acreditar que não existe uma barreira intransponível entre o saber do povo e o conhecimento científico:

O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica: a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. E para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior à ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. A ciência, curiosamente, depois de cerca de 4 séculos, desde que ela surgiu com seus fundadores, está colocando sérias ameaças à nossa sobrevivência.[6]

Também não vejo razão em se apartar, como se fossem coisas inconciliáveis, a cultura popular da erudita. Nesse sentido, o antropólogo Antonio Augusto Arantes adverte que embora alguns tentem nos ensinar a ter um modo de vida refinado e eficiente, a que se costuma apelidar de culto, jamais conseguiremos evitar que muitos objetos e práticas que rotulamos populares inundem o nosso cotidiano: “samba, frevo, maracatu, vatapá, tutu de feijão e cuscuz. Seresta, repente e folheto de cordel. Congada, reisado, bumba-meu-boi, boneca de pano, talha, mamulengo e colher de pau. Moringa e peneira. Carnaval e procissão. Benzimento, quebrante, simpatia e chá de ervas.”[7]

No nosso caso, esse tipo de abordagem justifica-se ainda mais. O mundo do trabalho tem sido construído historicamente a partir da luta das camadas mais humildes da sociedade, suas leis e regulamentos formam aquilo que se pode chamar de um direito dos pobres.[8] Por isso, creio não ser uma blasfêmia o fato de que em seu estudo possam habitar, lado a lado, a explicação técnica dos institutos jurídicos, cenas do cotidiano dos trabalhadores e páginas do cancioneiro popular consagradas ao trabalho. E se a alguém pode causar espanto a deferência conferida ao cancioneiro popular, tomo de empréstimo as palavras de Albert Tévoédjrè que, por sua vez, faz eco às de Jacques Attali:

Penso de fato que, tal como a escrita, o canto exprime freqüentemente, com ênfases imaginosas, a busca ou a plenitude, o desespero da solidão ou a alegria das comunidades vivas, e estou de acordo com Jacques Attali quando escreve: “... o mundo não se olha, ouve-se. Não se lê, escuta-se... Não acontece nada de essencial sem que o rumor esteja presente... Então, é preciso aprender a julgar uma sociedade por seus rumores, por sua arte e suas festas, mais do que pelas suas estatísticas.”[9]

Nessa perspectiva é que lhe proponho uma viagem pelo mundo do trabalho. Ouçamos juntos os rumores desse universo rico e dinâmico! Entoemos os lamentos e os cânticos de júbilo de seus protagonistas. Portanto, sejamos todos bem-vindos ao Direito do Trabalho!

Antônio Cavalcante da Costa Neto.


[1] Poema “Meu caro Jumento”, Cante lá que eu canto cá, (1986, p. 100).

[2] João Paulo II, Encíclica Laborem Exercens, in: Encíclicas e Documentos Sociais, vol. 2, (1993, p. 175-176).

[3] Karl MARX, O capital (1983, p. 149).

[4] Na asa do vento, João do Vale e Luiz Vieira.

[5] Questões atuais de Direito do Trabalho, Revista LTr, 61-01, p. 14-33.

[6] Rubem Alves, Filosofia da Ciência (1996, p. 18).

[7] O que é cultura popular, (1981, p. 12-13)

[8] Gustavo GUTIÉRREZ (A força histórica dos pobres, p. 123-124) fala, de maneira geral, em direito dos pobres ao falar da luta em defesa dos direitos humanos na América Latina, como uma alternativa ao enfoque neoliberal, que parte de uma igualdade formal inexistente na sociedade. O direito do trabalho também se caracteriza por ser uma alternativa a essa visão liberal, sendo parte importante desses direitos humanos dos pobres.

[9] Albert Tévoedjrè, A pobreza, riqueza dos povos, 1981, p. 39.

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