Pertinho do coração


Há muita coisa boa em Lisbela e o prisioneiro, filme de Guel Arraes, adaptado da peça de Osman Lins: o humor made in Brazil, com sotaque bem nordestino, pois até o do pretenso galã Douglas, metido a falar carioca, não deixa de ter o acento de um bom pernambucano; a sensualidade brejeira de Inaura, capaz de domar a valentia do marido, Frederico Evandro, um profissional matador; as peripécias do aventureiro Leléu e a meiguice de Lisbela, com seus sonhos alimentados pelos filmes de Hollywood; tudo isso embalado pela música de Fernando Mendes, que na voz de Caetano Veloso e acompanhada de violino e cello, prova que brega pode ser MPB.


Mas há no filme um diálogo que chama especial atenção, entabulado entre o tenente Guedes e o cabo Citonho. Este é flagrado pelo tenente, num encontro amoroso em plena delegacia. O tenente, indignado com a sem-vergonhice perpetrada naquele recinto, quer saber quem é a mulher que está com o cabo, que explica tratar-se de Francisquinha do Antão, ex-mulher de Raimundinho. É quando o tenente pergunta ao cabo: mas por que se chama tudo de Raimundinho, Francisquinha, pra que tanto diminutivo, pra que tanto “inho”, homem? E o cabo prontamente responde: é um denguinho, chefe.


O gosto pelo diminutivo é característica bem brasileira. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, o sufixo “inho” acrescentado a cada palavra nos deixa mais íntimos de pessoas e coisas, já que as torna mais acessíveis aos sentidos e as aproxima do coração. E o brasileiro, como também enfatiza aquele autor, é antes de tudo o homem cordial, o ser humano movido pelo coração.


O homem cordial herdou da cultura ibérica o espírito aventureiro, com sua concepção larga do mundo, própria de quem vive dos “espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes.” Nele também avulta a cultura da personalidade, característica hispânica influenciada pelo estoicismo de Sêneca. Cada qual é “filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes”, e por isso não se dá muita importância à ostentação de sobrenome, prevalecendo o nome de batismo, algumas vezes acarinhando pelo “inho”.


Por outro lado, esse mesmo homem cordial cultiva a erudição como ornamento e gosta de exibir o “anel no dedo”, afinal, um diploma de bacharel pode livrá-lo do trabalho que caleja as mãos e extenua o corpo. Outro meio de não ter que pegar no batente é valendo-se do amigo influente, o que pode ser visto já na Carta de Pero Vaz de Caminha, primeiro documento da literatura sobre nossa terra, e o primeiro a comprovar a ocorrência do pistolão em nossa história. Pois nessa concepção de cordialidade, de um amigo tudo se pode exigir e receber, e “quando se quer alguma coisa de alguém, o meio mais certo de consegui-lo é fazer desse alguém um amigo.”


Para o homem cordial, o desejo de intimidade não se limita às pessoas deste mundo. Até os santos são tratados sem muita cerimônia, alguns deles até com o uso do diminutivo, o que pode soar como pouco respeito com o sagrado ou expressão de uma religiosidade transigente e permissiva. No entanto, revela também um sentimento religioso mais singelo e humano, em que a divindade apresenta-se mais próxima do aconchego do lar e do coração do devoto, diferente da imagem de um Deus palaciano, “a quem o cavaleiro, de joelhos, vai prestar uma homenagem, como a um senhor feudal.”


Engana-se, porém, quem pensa que cordial é necessariamente sinônimo de afável ou amigável. A inimizade também brota do coração. Deste, como ensina Jesus de Nazaré, também provêm maus pensamentos, falsos testemunhos e calúnias, homicídios, adultérios e prostituições de todos os tipos. Sendo assim, nossa cordialidade original não há de ser considerada, em si mesma, boa ou má. O “jeitinho” brasileiro pode ser sinal de criatividade ou de corrupção, do mesmo jeito que a intimidade com os santos pode nos levar ao paraíso ou à perdição. Daí ser importante que as nossas raízes culturais, de fundo emotivo, retirem seu alimento do solo fértil da ética. Só assim nossa cordialidade será protagonista de uma grande aventura, na qual valerá a pena manter as pessoas, deste e do outro mundo, bem pertinho do nosso coração.

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