Loucura epidêmica?

Antônio Conselheiro morreu em 22 de setembro de 1897. Treze dias depois, numa terça-feira, 05 de outubro, o Arraial de Canudos foi destruído. Como relata Euclides da Cunha, ao entardecer daquele dia, “caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.000 soldados.” Quando descobriram onde estava enterrado o beato, exumaram e fotografaram o corpo. Depois cortaram a cabeça do finado, para ser objeto de exame científico.

O encarregado do estudo foi Raimundo Nina Rodrigues, que além de famoso médico legista, era psiquiatra, escritor e etnólogo, tido como fundador da antropologia criminal no Brasil. No laudo, ele concluiu que o crânio não apresentava anomalia que denunciasse “traço de degenerescência”, que era um “crânio de mestiço”, em que se associavam caracteres antropológicos de raças diferentes.

Naquele mesmo ano, Nina Rodrigues publicou o artigo “A loucura epidêmica de Canudos,” no qual diz que Antônio Conselheiro era seguramente um louco, mas de uma loucura que registra o reflexo, se não de uma época, ao menos do meio em que ela foi gerada. E vê em seus milhares de seguidores, entre os quais se destacavam os jagunços, a manifestação epidêmica da loucura.

Para Nina Rodrigues, o jagunço era o mestiço do sertão. Mestiço não apenas no físico, que reproduz os caracteres antropológicos das raças de que provém, mas também em suas manifestações sociais, “que representam a fusão inviável de civilizações muito desiguais.” Isso explicaria em parte o “contágio do delírio” de Antônio Conselheiro para uma multidão de seguidores.

Essas ideias, por absurdas que hoje pareçam, eram fundadas em ciência da época. Talvez por isso o extermínio de Canudos não tenha causado tanta indignação. Se ainda há quem pense nos moradores do Arraial como um bando de jagunços e fanáticos, não causa estranheza que poderes e poderosos de então estivessem convencidos de que não havia outra alternativa a não ser exterminar aquela gente, vista como ameaça à ordem e ao progresso, exaltados na bandeira da República recém inaugurada.

Alheios à inspiração positivista daquele lema, os seguidores de Antônio Conselheiro empunhavam a bandeira do Divino Espírito Santo que, como lembra Ariano Suassuna, era a bandeira do Brasil real, do povo pobre, negro, índio e mestiço, povo sufocado pelo Brasil oficial. Mas Ariano também lembra que os acontecimentos de Canudos se repetem a todo instante. No plano internacional, os países pobres são arraiais de Canudos sufocados pelas grandes potências. E até nas cozinhas de nossas casas, podemos ter nossos Canudos particulares, quando pisoteamos os direitos dos pobres.

Dave Eggers, escritor americano, publicou um artigo em que diz que o Presidente de sua República está clinicamente louco, e que todo mundo sabe disso, inclusive seus milhões de seguidores. Na campanha eleitoral, o Presidente teria dançado diante de um auditório lotado, em meio à pandemia que matou mais de duzentos mil americanos e que, segundo Eggers, iria matar alguns da plateia. No entanto, seus fiéis seguidores continuam apoiando essas atitudes, especialmente nas redes sociais.


Não tenho como atestar a loucura de ninguém. Também não sou adepto da cultura do cancelamento, de queimar pessoas que pensam diferente, na fogueira da inquisição das redes sociais. Mas me questiono sobre o quanto avançamos desde os tempos da Velha República, que ceifou mais de vinte mil vidas no massacre de Canudos, quando vejo, em plena pandemia, a disseminação da discórdia sobre qual vacina o governo deve comprar com nosso dinheiro, e candidatos e correligionários promovendo aglomeração em folias eleitoreiras, que a ciência de Nina Rodrigues poderia diagnosticar como loucura epidêmica. Até parece que vencemos a pandemia, e os mais de cento e cinquenta mil mortos pela doença em nosso Arraial são apenas o número de perdedores do inevitável processo de seleção natural, fadados à indiferença e ao esquecimento.

Comentários

  1. Lendo o seu belo texto lembrei desse poema:
    Olhem que beleza desse poema escrito há 2 séculos.

    Quando a tempestade passar,
    as estradas se amansarem,
    E formos sobreviventes
    de um naufrágio coletivo.
    Com o coração choroso
    e o destino abençoado
    Nós nos sentiremos bem-aventurados
    Só por estarmos vivos.

    E nós daremos um abraço
    Ao primeiro desconhecido
    E elogiaremos a sorte
    de manter um amigo.

    E aí nós vamos lembrar
    Tudo aquilo que perdemos
    e de uma vez aprenderemos
    tudo o que não aprendemos.

    Não teremos mais inveja
    pois todos sofreram.
    Não teremos mais o coração endurecido
    Seremos todos mais compassivos.

    Valerá mais o que é de todos do
    que o que eu nunca consegui.
    Seremos mais generosos
    E muito mais comprometidos

    Nós entenderemos o quão frágil somos, e o que
    significa estar vivo!
    Vamos suar empatia
    por quem está e por quem se foi.

    Sentiremos falta do velho
    que pedia esmola no mercado,
    que nós nunca soubemos o nome dele
    e sempre esteve ao nosso lado.

    E talvez o velho pobre
    Era Deus disfarçado...
    Mas você nunca perguntou o nome dele
    Porque estava com pressa...

    E tudo será milagre!
    E tudo será um legado
    E a vida que ganhamos será respeitada!


    Quando a tempestade passar
    Eu te peço Deus, com tristeza
    Que você nos torne melhores.
    como você nos sonhou.

    (K. O ' Meara - Poema escrito durante a epidemia de peste em 1800)

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