O Céu e a Língua.

 

Sempre gostei de trabalhar com palavras. Elas me fascinam e me instigam com seu poder. Isso mesmo. Palavras tem poder e isso não é novidade para ninguém. É até óbvio – sentiram o poder da própria palavra óbvio? –, mas o óbvio, de tão óbvio, por vezes gera efeito idêntico ao indiferente ou ao insólito.

Meses atrás, minha filha mais nova me fez um convite:

─ Painho, vou comprar o ingresso para O Céu da Língua. O senhor quer ir comigo?

Na hora, sem saber do que se tratava ─ confesso minha ignorância, naquele momento, sobre o conteúdo e o protagonista da peça ─ respondi com um não.

─ Mas o senhor pode me levar e me buscar?
─ Posso sim, filha.

Dias se passaram, e no final de semana anterior, ela me reavivou a memória:

─ Painho, a peça é quinta que vem. O senhor tá lembrado?

Eita! Da data eu não lembrava, mas do compromisso, tudo certo como combinado.

Fui à internet. Pesquisei sobre Duvivier e a peça. Tema que me interessa, sucesso em Portugal, etecétera e tal. Pensei na logística de levar e pegar minha filha, à noite, teatro longe que só. Resolvi ir junto, mesmo sabendo que não daria para ficarmos lado a lado. Além da peça, era oportunidade de conhecer o Pedra do Reino por dentro. Tinha circulado por lá poucas vezes, uma delas para levar minha filha a um show de AnaVitória.

Chegamos ao local pouco antes do horário marcado. Muita gente do lado de fora, esperando abrirem-se as portas. Atraso e desorganização, rotina por aqui. Não sei se toleram isso na ocidental praia lusitana. Fiquei surpreso, pois pensava que o público seria mais de jovens como minha filha. Mas não. Gente de todas as idades, professores universitários que eu conhecia. Encontrei um querido casal de ex-alunos, hoje advogados bem sucedidos, que pediu para fazermos uma self ─ inda estou esperando que me enviem (rs).

Finalmente abriram-se as portas. Teatro grande e bonito. Pena que na minha fileira eu ficava quase roçando as pernas no costado da poltrona da frente. Para as pessoas (entre elas uma senhora grávida) passarem, era preciso todo mundo se levantar. Eu, com meus botões: com tanto espaço disponível, não dava para projetar diferente?

Mas deixando os entretanto e indo aos finalmente, como diria Odorico Paraguaçu (os mais velhos, como eu, sabem de quem falo), gostei muito da peça “em si” ─ eita! Lá vem Kant! (rs): a busca pela metáfora perdida nos vocábulos dicionarizados, o resgate do sabor das palavras gastas, como as do poema Adeus, de Eugenio de Andrade, o tropeçar na poesia do cotidiano, falas e cantos ao som da ambientação musical do contrabaixo, e à meia-luz das projeções habilmente manipuladas e exibidas ao fundo da cena.

Dias depois, na missa das seis da manhã, a segunda leitura foi da Segunda Carta a Timóteo. O tom é de um discurso de adeus. Paulo, dirigindo-se a Timóteo, recorda a fé sincera do amigo, vinda desde a avó Loide e da mãe Eunice. Exorta-o ainda a reavivar o carisma divino recebido pela imposição das mãos do Apóstolo. O que mais me despertou a atenção, porém, foi a expressão “compêndio das palavras sadias”, utilizada naquela tradução, para se referir ao depósito da fé transmitido por Paulo ao amigo.

Ensina um comentarista do texto, que compêndio é palavra grega, vinda da retórica, que exprime algo que se põe diante dos ouvintes como descrição viva e plástica de um depósito precioso. E na homilia, o padre realçou a importância de não nos afundarmos no “pântano das palavras daninhas”, expressão minha, interpretando o que ele disse e que me fez refletir.

Se as palavras têm poder ─ e elas têm ─, é preciso cuidado com elas. O compêndio das palavras sadias é precioso não apenas no universo religioso. Serve para mim, para Duvivier, para todo mundo. Pois o calor das paixões daninhas pode nos levar a adotar outros compêndios, em que as palavras destratam os outros como se fossem o inferno – eita! Lá vai Sartre! (rs) –, e que nos deixam bem longe do céu.

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