Sem hera nem cabaça.

Uma das cenas que mais gosto na série Young Sheldon é quando, em pleno culto, o menino levanta a mão para questionar o Pastor. É claro que o momento litúrgico da pregação, seja de qual for a igreja, não é o mais apropriado para praticar dialética. Mas que às vezes dá vontade de levantar a mão, isso dá.

Coisa parecida, segundo se conta, acontecia nos primeiros séculos do cristianismo. Fiéis interrompiam a leitura pública do trecho do livro de Jonas, em que Deus faz crescer uma planta sobre o profeta, para dar sombra à sua cabeça e livrá-lo do calor infernal. Na versão lida, da Vulgata de São Jerônimo, constava o nome do vegetal como hera, enquanto em outras versões latinas anteriores, o original hebraico “qi-qa-yóhn” era traduzido como cabaça. Dizem que alguns ouvintes só se aquietavam quando os celebrantes traziam a cabaça de volta.

Cabaça ou cabaceiro é a tradução sugerida por alguns peritos no léxico hebraico do Antigo Testamento. Para eles, era a palavra mais adequada para designar uma espécie vegetal que crescia rapidamente em lugares quentes, bastante utilizada para cobrir de verde paredes de abrigos, protegendo contra o calor. Hera foi o termo adotado por São Jerônimo, em razão da similitude entre a palavra hebraica e a egípcia “kiki,” e que depois passou a ser traduzido como mamona ou mamoneira.

Brigar pela correta tradução de uma palavra pode ser exagero. No caso da cabaça, a troca por hera ou mamoneira não compromete o sentido da mensagem, tampouco a ironia teológica do texto. Tanto faz que uma ou outra tenha sido a planta que, num dia, deu a Jonas sombra e alegria, e no outro secou, picada por um verme mandado por Deus, junto com um vento quente que irritou o profeta – ou antiprofeta –, a ponto de ele desejar a morte. Mas para quem, como São Jerônimo, era apaixonado pela preservação das Escrituras, todo cuidado é pouco para não se cair no “traduttore, traditore”, do adágio italiano. Por isso, para que o tradutor não seja um traidor, às vezes é preciso o primeiro brigar com o segundo. E de uma boa briga São Jerônimo não fugia, como aconteceu na apologia contra os livros de Rufino, motivada pela tradução dos Primeiros Princípios, de Orígenes de Alexandria.

Orígenes não duvidava da verdade do Texto Sagrado. Mas defendia a necessidade de sua correta tradução e interpretação, fazendo a distinção entre três níveis de leitura das Escrituras: o literal, o moral e o espiritual, cada um deles revelando um estado de consciência e de maturidade psicológica e espiritual do leitor.

Ocorre que algumas de suas escolhas custaram-lhe caro. Para resistir às tentações carnais – ou quem sabe, numa interpretação literal do texto bíblico que manda cortar fora o órgão que for causa de pecado – ele castrou a si mesmo. Por isso foi forçado pelo bispo Demétrio a deixar Alexandria. Depois foi considerado herege por defender a preexistência da alma e a apocatástase, uma espécie de reconciliação universal das criaturas com o Criador, em que até o diabo tinha chance de se salvar.

A obra de Orígenes não era conhecida em Roma. Por isso Rufino resolveu traduzi-la para o Latim. Mas achou por bem retocar o texto aqui e acolá, para facilitar a leitura, expediente que, segundo Rufino, teria sido inspirado em traduções de outras obras de Orígenes, que Jerônimo havia feito. Jerônimo se irritou com a menção de seu nome para justificar uma prática que ele reprovava. Não era um simples problema de tradução, mas a mácula de um conteúdo de fé.

O mundo de então presenciou uma briga teológica da qual até hoje podemos tirar lições, pois apesar de ferrenha era profunda. Bem diferente de certos bate-bocas rasteiros que ouvimos no mundo de hoje; bem diferente de certas pregações vazias, que nem fazem a gente ter vontade de levantar a mão durante o culto. Conversas sem pé nem cabeça, sem hera nem cabaça.

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