Luz que vem da Idade Média.




Faz pelo menos quinze anos que sou colaborador do Jornal Nosso Tempo. Colaborador mesmo, de uma alegria não monetizável por alguém ler o que escrevo, a ponto de eternizar minha gratidão, como fiz no texto “Obrigado pela carta e pela vida”, dedicado à Irmã Leal. Não como trocadilho semântico para renomear “empregado”, como fazem alguns bem ou mal-intencionados, achando que basta trocar o nome para mudar a realidade.

Antes do carnaval, costumo trazer o tema da Campanha da Fraternidade. Às vezes como assunto principal, às vezes como referência entrelaçada a outros conteúdos, a exemplo do ano passado, quando misturei folia filosófica com a Síndrome de Caim. Foi um jeito de não falar, na ocasião, sobre as tretas entre grupos de nossa Igreja, a partir das críticas de quem enxergava influências da agenda woke no cartaz da Campanha sobre amizade social.

Eu mesmo não achei apropriada a frase “Vós sois todos irmãos e irmãs”, colocada no cartaz como sendo citação de Mt 23,8. Em todas as traduções que disponho, a palavra irmãos, como devia ser o uso da época, já incluía o gênero feminino. A questão aqui não é de hermenêutica atualizadora, mas de acréscimo de uma palavra que não consta no original. Mas como, de modo geral, achei desmedidas as críticas de católicos conservadores – e por favor não leia o termo aqui em tom depreciativo, pois em muitos assuntos conservar é preciso –, preferi não aspergir cizânias em tempo de penitência.

O tema da amizade social veio da Fratelli Tutti, de 2020. A expressão que dá nome à Carta Encíclica foi utilizada por São Francisco de Assis, e retomada pelo Papa, como convite a uma fraternidade aberta, que permita amar todas as pessoas indistintamente. Mas assim como no texto bíblico, São Francisco utilizou a palavra irmãos (fratelli) incluindo também as irmãs (sorelle), tal qual, na tradução inglesa do versículo, brothers não exclui as sisters.

Este ano o tema é fraternidade e ecologia integral. No cartaz, no estilo artístico de colagem, como símbolo de diversidade e integração, a terra é uma dádiva divina que precisa do cuidado humano. A natureza brasileira é representada pela araucária, o ipê amarelo e o mandacaru, além da onça pintada e das araras canindés. Do lado oposto, prédios e favelas dos aglomerados urbanos, que podem ameaçar não só a vida da fauna e da flora, mas a dos seres humanos. A cruz de Cristo aparece como centro da espiritualidade quaresmal, com destaque para a imagem de São Francisco, recortada do quadro do pintor espanhol Jusepe de Ribera. O lema, retirado de Gn 1,31, é “Deus viu que tudo era muito bom.”

Confesso que, ao ver o lema, fui conferir o texto bíblico. Nada de mais. Apenas me certificar quanto ao “muito.” Abri minha Bíblia de Jerusalém, toda grifada para estudo desde o curso de Teologia – saudade das aulas de Dom Antonio Muniz –, e estava lá o advérbio de intensidade. Depois, me socorri das notas de rodapé da Bíblia do Peregrino. Queria rever algum comentário não apenas do versículo, mas sobre o “muito bom” da criação, na perspectiva do redator do texto sagrado. E mais uma vez me deparei com as indagações de Luís Alonso Schökel: “Se tudo é bom desde a origem e por ela, se o homem é a coroa de um universo excelente, como se explica a presença do mal? Não são bem e mal a divisão mais radical que o homem experimenta? A morte é o mal definitivo e a dor é sua antecipação; a terra, feita para dar frutos, dá espinhos; o trabalho é fatigante e pouco produtivo; a fecundidade é dolorosa. Por quê?” E conclui o comentarista, dizendo que quem assim reflete tem mentalidade “sapiencial” madura, pois pergunta pelo sentido da vida.

São Francisco também tinha mentalidade sapiencial madura. A Fratelli Tutti lembra que ele “não fazia guerra dialética impondo doutrinas”, e reconta um episódio de sua vida que revela um “coração sem fronteiras.” A visita que fez ao sultão do Egito exigiu dele grande esforço, não só em razão de sua pobreza, mas das diferenças culturais. Mesmo assim, e sem negar a própria identidade, São Francisco foi encontrar o monarca, sem provocar litígios nem contendas. Pois acima de tudo, ele irradiava para o mundo a luz do amor de Deus.

O Pobre de Assis volta a inspirar a Campanha da Fraternidade neste 2025. Desta vez, retomando o tema da ecologia integral, tratado na Encíclica Laudato Si, que vai completar dez anos em maio. Luz que brilha desde a Idade Média. E ainda tem quem ache que Idade Média é só trevas. Misericórdia!


Comentários