O que haveremos de salvar?

Joseph-Désiré Court, Public domain, via Wikimedia Commons

Por que na cena do dilúvio, de Joseph-Désiré Court, o homem em cima da rocha tenta salvar o pai ancião que está se afogando, e não a esposa ou o filho pequeno que ela tenta lhe entregar? Não são poucas as interpretações da tela do pintor francês, exposta pela primeira vez no salão de Paris de 1827.

Naquele tempo artistas eram bancados pela Igreja ou pelos reis. E não foi por acaso que, naquele ano, Carlos X mandou abrir as portas do salão no dia 4 de novembro, data em que se comemorava o dia do rei. Neoclássicos e românticos disputavam os louros do mundo da arte, e ao Estado interessava comandar os rumos do padrão estético. A tela de Court já tinha ganho o prêmio de Roma. Por isso não concorreu com as outras no salão de Paris. Mas foi comprada pela Coroa francesa, que a doou ao museu de Belas Artes de Lyon.

Desde então a pergunta que abre este texto desperta o interesse de sucessivas gerações. Quando Freud, no Futuro de uma Ilusão – e depois, no Mal Estar na Civilização, em resposta a Romain Rolland e ao sentimento oceânico referido por este –, identifica a origem da religião no desamparo infantil e no anseio pela proteção do pai, a imagem do homem tentando resgatar o ancião é associada a essa identificação. E seja qual for a interpretação, sempre se destaca o aspecto simbólico dos personagens da cena.

O homem, como aquele que age no mundo, seria o presente; o pai, o passado; o filho, o futuro, e a mulher, a vida que se gera e se regenera. No final, o homem escolhe salvar o passado, a tradição moral e espiritual que sempre teve como segurança e refúgio. Mas vale a pena deixar morrer debaixo das águas o fôlego da esperança?

Voltemos a 1827. Enquanto em Paris a cena do dilúvio fazia sucesso, por aqui o destaque era outro artista francês. O bonapartista Jean-Baptiste Debret, que tinha chegado ao Brasil há mais de dez anos, retratava em aquarelas e desenhos uma viagem ao sul do país naquele ano, na comitiva do Imperador.

A bem da verdade, há controvérsias se Debret realmente fez parte da comitiva. Naquele ano, segundo o jornalista gaúcho Nelson Adams Filho, o que houve foi uma “viagem maluca de Dom Pedro I pelo Sul do Brasil”, iniciada no final do ano anterior, com fatos que não constam dos manuais da história oficial, incluindo a estratégia de Dom Pedro em retardar o retorno à sede da Corte, devido à revolta da população contra ele e Domitilia, em razão da morte da Imperatriz Leopoldina. Seja como for, as gravuras com temas do sul país existem. São mais de cem datadas daquele ano, que podem ter sido feitas a partir do que o próprio Debret teria visto na viagem ou com base em esboços de outros artistas que teriam integrado a comitiva.

Debret veio ao Brasil junto com a missão artística francesa, trazida por D. João VI. Dom João precisava mostrar à Europa que aqui também podia haver um país decente, e o grupo de pintores, escultores e gravadores poderiam ajudar a construir uma imagem decente da Corte. Afinal, o poder se estabelece também pela força da imagem. Os quadros oficiais de Debret fazem parte do que hoje podemos chamar de campanha publicitária dos ocupantes do poder.

Um desses quadros, “A Coroação de D. Pedro I”, costuma ser comparado com “A Coroação de Napoleão”, pintado por Jacques-Louis David, primo e mestre de Debret. A tela de Debret apresenta influências da obra de David nas cores, tons e posição dos personagens. Mas mostra Dom Pedro como um imperador do Novo Mundo, de bota até o joelho, diferente de um europeu, de fivela e salto alto.

Ao lado das imagens oficiais, Debret retratou o cotidiano de pessoas, festas populares e paisagens naturais. É dele a Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, uma espécie de álbum iconográfico, recheado de imagens em que o traço do artista se afasta do intuito de campanha publicitária e ganha maior liberdade de expressão.

Nestes dias presenciamos cenas de dilúvio no sul do Brasil. Morte, dor, sofrimento, solidariedade. As imagens de hoje não dependem mais das gravuras de Debret, e revelam polêmicas de civis salvando civis, enquanto o Estado faz ou não sua parte. Ajuda necessária, comício desnecessário. Cobertura jornalística séria e mídia fazendo média. Do passado, herdamos o abandono de políticas públicas de adaptação climática. No futuro, a geração e regeneração da vida não tolera mais esse descaso. E como o homem da cena, somos chamados a fazer escolhas. No final, o que haveremos de salvar?


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