Cantar e contar com Maria

 

Neste mês de outubro, o Papa Francisco abriu um processo de consulta para o Sínodo dos Bispos 2021-2023. Seu desejo é de que a gente seja uma Igreja da escuta, mais amiga da sociedade, mais amistosa com o mundo. Que deixe para trás práticas discriminatórias, especialmente com as mulheres. Mais do que nunca, é tempo de nos inspirarmos na vida e missão de Nossa Senhora. Não realçarmos nela uma doçura muito açucarada, que pode esconder o patriarcalismo ainda reinante em nossas estruturas. E podemos começar analisando o seu cantar, como fez Martinho Lutero.

Monge e professor de Teologia, Lutero não se conformava com a venda de indulgências do seu tempo. Dirigentes da Igreja endividados com famílias de banqueiros, outros cobiçando títulos de príncipes bispos, outros ainda para construírem suntuosas catedrais, ganhavam dinheiro negociando a remissão dos pecados. Foi aí que Lutero escreveu suas 95 teses, alertando ao povo que  “pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu].”

Conta-se que o monge teria enviado as teses para um Arcebispo, além de pregar o texto na porta da igreja de um castelo, no final de outubro de 1517. As teses de Lutero foram reimpressas e ganharam o mundo. Seus superiores eclesiásticos o acusaram de herege, e ele terminou excomungado anos mais tarde. Preocupados com a segurança de Lutero, amigos o levaram para um refúgio, onde ele escreveu um dos mais belos comentários do Magnificat, o louvor de Maria.

            O livro foi dedicado ao duque da Saxônia, de quem Lutero se dizia obediente capelão, e que teria externado o desejo de receber orientações do religioso, de como um príncipe devia governar cristãmente. Pois como diz a dedicatória, “o bem-estar de muita gente depende de um príncipe tão importante, quando ele é governado pela graça de Deus. Por outro lado, dele depende a desgraça de muitos, quando ele se volta para si próprio e não é governado pela graça.” Nessa perspectiva, o Magnificat pode ser visto como modelo de ética política, para governantes que se propõem a exercer sua autoridade com humildade e cuidado com os mais pobres.

 É igualmente legítima uma leitura do texto a partir da hermenêutica feminista. E assim o faz Edla Eggert. Ela cita a professora Lois Malcolm, para quem o Magnificat “não conta um conto de Deus encontrando uma pessoa pecadora orgulhosa. Em vez disso, conta um conto de Deus encontrando uma mulher que a sociedade tinha visto como insignificante e dando-lhe um novo status.” E lembra que no comentário ao louvor de Maria, Lutero destaca que, se quisesse, Deus poderia ter escolhido uma mulher rica e importante, como a filha de Anás ou Caifás, os maiorais daquela sociedade. Porém, olhou para uma moça humilde, que não tinha vida diferente das meninas pobres daquele tempo, e mesmo depois de exaltada pelo Anjo, continuou com a vida simples e grandiosa de mulheres que ordenhavam vacas, cozinhavam, lavavam louça, varriam a casa.

Mas quando abre a boca para cantar a Deus, aquela mocinha simples ganha ares de mulher forte, comprometida com a história do povo, especialmente dos mais pobres. Naquele instante, como destaca D. Bonhöffer, não fala a doce Maria das imagens, “mas uma Maria apaixonada, impetuosa, altiva, entusiasta. Nada dos acentos adocicados e melancólicos de tantos cantos de Natal, mas o canto forte, duro, impiedoso dos tronos que desmoronam, dos senhores humilhados, da potência de Deus e da impotência dos homens.”

Depois do louvor na Anunciação, Maria não conta conversa. Parte depressa para visitar Isabel, numa viagem longa, de mais de cem quilômetros. E em nenhum momento o texto sagrado diz que ela pediu permissão ao noivo para isso. Surge diante de nós uma Maria decidida e autônoma, bem diferente da imagem que muitas vezes nos é apresentada, de uma mulher sem vontade ou opinião próprias.

Na visitação à prima, em vez de uma, temos a ação de duas mulheres. Atos de amor e ternura de uma grávida para outra grávida. E como observa Márcia Blasi, por que não se pode fazer uma interpretação da cena que vá além do foco na reação das crianças em seus ventres? Por que não enxergamos ali o encontro de mulheres que se reconhecem fazendo história? “É ali, no abraço, que o empoderamento delas acontece.” Talvez nossa miopia patriarcal nos impeça de ver isso com clareza. É tempo de cantar e contar com Maria.                                                   

Comentários