Bendita entre todas e todos

Me incomoda a ideologização e apropriação de muita coisa que existe neste mundo. Ainda mais quando isso é feito para rotular e cancelar quem não faz parte de sua bolha. Meu anel de tucum? Uso como sinal de fé comprometida com causas sociais. Mas qual o problema que ele sirva para identificar a luta de outras pessoas e grupos? Um adereço do artesanato indígena desde os tempos do Imperador, verdadeira joia de pobres, o anel de coco não precisa ser patrimônio exclusivo de ninguém. E bem que pode ser um símbolo que nos une, e não distintivo que nos divide.

Minha formação cristã vem dos tempos da Pastoral de Juventude do Meio Popular. Por isso não tenho como negar a influência da Teologia da Libertação no meu jeito de ver, julgar e agir no mundo. E não se trata apenas de uma doutrina que nos foi ensinada, mas de uma rica experiência de vida, da convivência fraterna com tantas pessoas, de tantos acontecimentos, que assim como Nossa Senhora fazia com os mistérios da fé e da vida, eu guardo e medito em meu coração.

Claro que não me atrevo a me comparar com Nossa Senhora. Entre todas as pessoas humanas que viveram neste mundo, Maria é incomparável. Quando falo em pessoas humanas, não é como redundância, pois não incluo Jesus Cristo entre elas. É certo que Jesus, filho de Maria, foi menino e foi homem, mas nunca deixou de ser Deus Menino e Homem Deus. Já Nossa Senhora, como diz a canção do padre Zezinho, ela não é deusa, mas depois de Jesus, neste mundo ninguém foi maior.            

De modo geral, os textos bíblicos destacam mais as figuras masculinas do que as femininas. Isso se explica, em parte, por terem sido escritos mais por homens do que por mulheres, em sociedades rigidamente patriarcais. Por isso, pode soar estranho que a genealogia de Jesus, segundo Mateus, tenha passado por algumas mulheres que não se encaixavam nos padrões do povo daquele tempo: Tamar, que se passou por prostituta para ter relação com o sogro Judá; Raab, a prostituta que deu guarida aos espiões de Josué, e mentiu por uma boa causa; Rute, estrangeira tal qual Raab, mas que se tornou bisavó do rei Davi; Betsabéia, mulher de Urias, com quem Davi adulterava.            

O texto sagrado também chama de benditas entre as mulheres outras duas protagonistas da  história da salvação. No Cântico de Débora, esta diz: Bendita entre as mulheres Jael seja, bendita entre as mulheres das tendas. E quem era Jael? A mulher de Héber, o quenita, mulher que para libertar o povo de Israel, matou Sísara, comandante das tropas inimigas, cravando-lhe uma estaca na têmpora. O rei Ozias, por sua vez, diz a Judite: Bendita sejas, filha, pelo Deus altíssimo, mais que todas as mulheres da terra. E por que ele diz isso? Porque minutos antes, Judite tinha chegado trazendo um alforje, e dentro dele a cabeça de Holofernes, o general inimigo que ela havia degolado.

Na história do povo de Deus, essas personagens fazem parte de uma tradição de mulheres libertadoras. Cada uma, no seu tempo e a seu modo, é verdadeiramente bendita. Maria, porém, é bendita num grau tão superlativo que vai além da compreensão humana. É bendita não somente entre as mulheres, mas entre todas as pessoas humanas que viveram, vivem e viverão neste mundo. Imagine só um Anjo do Senhor, embaixador do próprio Deus, dar-se ao trabalho de negociar com um ser humano para realizar o plano divino de salvação da humanidade! É o céu descendo à terra para pedir um sim a uma mulher humilde de um vilarejo obscuro. E esse Anjo, no relato da Anunciação, nem diz Ave, Maria!, e sim, Alegra-te, cheia de graça!, saudação tão inusitada que deixa Maria confusa, sem saber seu significado.

Qualquer palavra é insuficiente para se referir a Nossa Senhora. Talvez por isso, nossa veneração por ela leve às hipérboles próprias de um coração devoto. E tirando pelos relatos bíblicos, e pelas palavras colocadas na boca de Maria – poucas, mas profundas e grandes, como comenta Lutero sobre o Magnificat –, Nossa Senhora aparece com perfis bem diferentes. Como mulher de fé e serva de Deus, não é apenas doce e meiga, mas humilde e altiva, livre, sábia e até impetuosa. Ela não cabe em nenhum adjetivo, religião, doutrina ou ideologia. Ela não é patrimônio religioso exclusivo de ninguém. É a única pessoa humana com virtudes capazes de unir céu e terra, e reunir todas as outras em meio a tanta diversidade. Não consigo mais pronunciar o nome dela sem sentir o coração estremecer, o que me lembra o poema de Mário Quintana:

 

Há três coisas neste mundo

cujo gosto não sacia...

É o gosto do pão, da água

e o do nome de Maria.

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