Ave Maria


Não é preciso a pessoa professar uma fé religiosa para se sentir tocada pela melodia de uma Ave Maria. Entre todas, talvez a mais famosa seja a de Bach/Gounod. O primeiro compôs o Prelúdio em Dó Maior, que faz parte do livro O Cravo Bem Temperado, uma coleção de peças musicais escritas para cravo, com o propósito de aprendizado para os jovens músicos e entretenimento para os mais experientes. Mais de cem anos depois, o outro, com a ajuda do sogro, tomou o Prelúdio como base para criar sua canção, ornada depois com a letra da clássica oração em Latim. Assim nasceu uma obra imortal, tocada por tantos instrumentos, do piano ao cavaquinho; cantada por tantas vozes, de Pavarotti aos Carpenters.

Bach foi educado na fé protestante. Foi Mestre do Coro na Igreja de São Tomás, em Leipzig, tendo entre suas obras mais conhecidas Jesus, Alegria dos Homens. Por sua profundidade e refinada estética, há quem o considere o Pai da Música, sendo estudado e enaltecido por gênios como Mozart e Beethoven. Gounod, que viveu no seio da fé católica em Paris, compôs a música do Hino do Vaticano. E quando criou a melodia para se sobrepor ao Prelúdio de Bach, nem pensou logo que seria uma Ave Maria, mas uma Meditação, dedicada à namorada. Essa melodia transcende às paredes de prédios erguidos para cultos religiosos. Ela pode servir não apenas como canto para meditação, oferecido à pessoa amada, como fez Gounod, mas para variadas ações práticas e teóricas, como ilustram uma pesquisa sobre o efeito da música para gestantes e recém-nascidos, e um ensaio sobre a Ave Maria e os fractais.

Vendo a música não só como remédio para as dores do corpo e da alma, que caracteriza a musicoterapia, mas também como escudo e proteção para pessoas sadias enfrentarem as tensões do dia a dia, o que é próprio da biomúsica, pesquisadores do Curso de Enfermagem da USP reuniram gestantes acompanhadas em Unidades Básicas de Saúde, para sessões de sensibilização musical a partir da vigésima semana de gravidez. Depois utilizaram as mesmas músicas ouvidas nas sessões, durante o trabalho de parto de cada uma. Entre as melodias mais escolhidas estava a Ave Maria, sobre a qual uma das mulheres disse que a música fez muita diferença na hora do parto, pois naquele momento ela estava rezando bastante, o que lhe fortalecia. Essa atitude, na visão de um dos cientistas referidos na pesquisa, revela a conexão entre o nascimento e a oração, pois rezar, segundo ele, reduz a atividade do supercomputador neocortical, ajudando pessoas a atingirem uma outra realidade, fora do tempo e do espaço.

Já o ensaio de um pesquisador da Universidade Federal da Bahia observa que essa Ave Maria pode ser tida como um fractal sonoro, devido à sua estrutura, em que um tema particular é repetido o tempo todo durante a música, à imagem e semelhança do que os matemáticos chamam de autossimilaridade. Fractal é um termo criado por Benoît Mandelbrot, a partir da raiz latina fractus, que nos traz a ideia de fratura ou fragmento. Com os fractais, Mandelbrot busca formular uma geometria capaz de descrever desde as nuvens até as folhas de uma samambaia. E ao lembrar que as nuvens não são esferas, as montanhas não são cones e a casca da árvore não é lisa, explica que as formas geométricas clássicas não conseguem descrever o nosso mundo, que é áspero e irregular. Por isso, o gotejar de uma torneira pingando, as batidas de um coração enamorado, as mudanças climáticas que nos afligem, as oscilações do mercado financeiro que nos assustam e até a Ave Maria, mesmo sendo coisas tão dessemelhantes, todas cabem na geometria fractal.

Neste tempo em que as mudanças climáticas fazem do coração do Brasil um solo esturricado, enquanto no coração de muita gente são lançadas sementes esturricadas de ódio contra quem não faz parte do seu cordão, a Ave Maria nascida da inimaginável parceria musical entre mestres de mundos tão diferentes pode servir como uma oração de paz e amor, capaz de levar as pessoas a atingirem outras realidades fora do tempo e do espaço. E como fractal sonoro, pode ajudar na formação da consciência de que os horizontes do mundo não acabam no mundinho que cada pessoa constrói só para si; de que é preciso respeitar quem habita além de suas próprias bolhas ideológicas. Pois fractais não são apenas padrões matemáticos infinitos de um mundo marcado por diversidades e disparidades. Eles também são considerados impressões digitais de Deus.

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