Salmos, cores e orações



Os Salmos são uma coleção de cento e cinquenta orações em forma de poemas. Como observa Marc Girard, enquanto algumas pessoas colecionam selos, entre outros objetos – eu mesmo, quando criança, tive uma pequena coleção de chaveiros, pendurados com alfinetes numa folha de isopor na parede –, o povo de Israel colecionava não apenas leis e histórias, mas suas preciosas orações.

O povo, como destaca Girard, necessita de seu acervo de histórias e de leis. Mas como estas se expressam no linguajar jurídico, não raro se tornam pesadas e cansativas para quem as lê. As histórias, por outro lado, embora despertem enorme interesse nas pessoas, que se identificam com personagens e tramas das narrativas, não se comparam com a corrente rítmica da linguagem poética, quando se quer falar do que vem do fundo da alma. Não é à toa que, como nos ensina Octavio Paz, existam povos sem prosa, mas nenhum sem poesia.

Como ocorre com a literatura em geral, nem sempre dá para catalogar as produções dos poetas salmistas, para acondicioná-las em caixinhas com etiquetas bem definidas. Mas há quem classifique os Salmos em hinos, súplicas e ações de graça. Os Cânticos de Sião – cidade fundada sobre as montanhas sagradas, cujas portas são amadas por Deus mais que todas as moradas de Jacó – são tidos como hinos. Já o Miserere – do pequei contra ti, contra ti somente – figura entre as súplicas, que são orações de sofrimento ou lamentações. Marc Girard, porém, propõe uma divisão dos Salmos em quatro grandes famílias, cada uma relacionada a uma palavra-chave. Os de libertação, a drama; os de instrução, a lição; os de louvor, a admiração; e os de celebração da vida, a festa.

Os primeiros, mais numerosos – oitenta e nove, nas contas de Girard — e também os mais sombrios, nascem das aflições do povo em tempos de crise. Quase todos, na percepção daquele autor, apresentam uma sequência dramática de oito etapas: queixa, súplica, esperança, intervenção divina, experiência de libertação, agradecimento, serenidade estável e comunicação em público, simbolizadas por oito cores, respectivamente, preto, roxo, verde, amarelo, branco, prata, azul e vermelho.

O primeiro passo para a libertação é não se deixar sufocar pela angústia dentro do peito. É fazer como o salmista, soltar a língua quando o coração queima a gente por dentro. Ninguém sai do túnel escuro (preto), sem deixar o coração falar do seu drama. Depois é preciso gritar, pedir socorro aos céus (azul) para aplacar o incêndio interior (vermelho). É do azul e do vermelho que nasce o roxo, que simboliza penitência e preparação. E ainda que a resposta do céu não venha na velocidade que a gente deseja, não se deve perder a fé em Deus. Só Ele tem o poder para sustentar nossa fé e manter viva nossa esperança (verde). No tempo certo, há de se manifestar a intervenção divina, como um raio de luz (amarelo) na escuridão. Superado o drama, a experiência de libertação é também de purificação (branco), restando ao ser humano agradecer à bondade divina, que mesmo sendo um dom gratuito, não impede que a pessoa reconheça sua dívida de gratidão, quase como um preço que livremente quer pagar (prata). Da provação, a pessoa sai mais forte, o que traz a paz interior, que só se encontra nos tesouros do céu (azul), e que deve levar cada um a testemunhar e assumir publicamente o compromisso com uma nova ordem de justiça e amor, alimentada pelo fogo (vermelho) do Espírito que salva e liberta.

Nestes últimos dias, tem me dado agonia perceber que aquilo que está ruim pode piorar. Depois de um ano de sofrimento, quando se esperava que o cenário da pandemia melhorasse, a cada momento chega notícia de mais gente morrendo, apesar da esperança do avanço da imunização pela vacina.

Bem sei que nesse drama, que tomou contornos de tragédia, não é justo o dedo em riste apontar numa única direção. É hipocrisia bater no peito para recitar o Miserere sem reconhecer as próprias transgressões. Insensibilidade, irresponsabilidade e omissão podem ser pecados não só de governantes, mas também dos governados. Mas é claro que, a quem muito foi confiado, dele mais será exigido.

Com o coração aflito pelas dores da pandemia, ainda me vejo na penumbra de um túnel pouco iluminado. Mas tenho fé que haveremos de atravessá-lo. As luzes da ciência humana, que produz a vacina, receita máscara e mais paciência para continuar com o distanciamento, sinalizam um caminho relativamente seguro para a travessia, embora esta também tenha que passar, entre outras, pelas veredas da economia, da política e do direito. Isso, porém, não significa que a gente se deixe guiar cegamente pelos que controlam as roletas do mercado, pelos que se aproveitam da crise para afiar as garras da ganância pelo poder, tampouco por doutores da lei que dão cavalo-de-pau no discurso jurídico, para desviar o direito da rota do bem comum. 

Prefiro louvar a bondade humana de heróis e heroínas que não buscam autopromoção nem vivem de likes. Pessoas que, mesmo exaustas, estão dia e noite ao lado dos leitos dos hospitais, cuidando de outras pessoas que lutam pela vida. Parafraseando um daqueles minutos de sabedoria de biscoito da sorte, as maiores realizações, neste momento, são dessas pessoas cansadas e desanimadas que continuam fazendo o seu trabalho. Elas nos dão testemunho vivo de amor ao próximo, receitado pelo próprio Deus como caminho para salvação, o que nos ajuda a manter a fé e a esperança na bondade divina, à qual elevamos orações em forma de poemas.


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