Na peneira da razão



Não sei se com você, mas comigo acontece com frequência. Sem mais nem menos, a vitrola da memória começa a tocar uma música. Nestes dias, me veio à cabeça o refrão: “leve a colcha, eu preciso dessa colcha, abra a trouxa, bote a colcha, leve a colcha pra lavar.” E como muito da informação (ou desinformação) está na palma da mão, peguei o celular para acessar o buscador. Vi que o título daquela música, que eu tanto ouvia no passado, é Mariá. Composta por João Gonçalves e Messias Holanda, ficou conhecida na interpretação deste último.

Fui criado ouvindo esse tipo de música, que sempre achei insinuante. Sei que as letras de algumas delas, como a de Americanizado, de Genival Lacerda, podem conter expressões que no contexto atual podem não ser bem compreendidas. No caso de Mariá, a letra me fez recordar de quando advoguei no Centro de Direitos Humanos da Diocese. Eram tempos de efervescência dos movimentos sociais, e havia na região muitas lavadeiras, que decidiram se organizar em associação. Para melhorar as condições de vida e trabalho, fixaram o preço da lavagem de acordo com o tamanho da trouxa das roupas dos clientes, o que às vezes dava ensejo a brincadeiras com a palavra trouxa.

Muito da inspiração para as conquistas sociais da época vinha da Teologia da Libertação, bem como do testemunho da ação pastoral da Igreja Católica. A opção preferencial pelos pobres não ficava na letra dos seus documentos, mas expressava o espírito de comunidades que tinham a consciência de que, mesmo não sendo esta terra o seu destino último, o cristão não deve ser alheio às injustiças do mundo. Mas como diz Camões, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Novos tempos trouxeram novas inspirações doutrinárias à Igreja, incluindo a percepção dos desacertos daquela concepção teológica que, apesar dos erros, não merece ser demonizada.

Longe de mim querer fazer a cabeça de ninguém. Penso, porém, que quando se entra numa igreja não é preciso amputar do juízo o senso crítico. Confesso que esse pensamento pode ser um traço da rebeldia que minha mãe costumava dizer que via em mim, e que por vezes influencia meu comportamento desde que me entendo por gente.

Lembro de quando tinha pouco mais de dezoito anos. Era quaresma, e o padre, num sermão, advertiu que estaria em pecado quem fosse assistir a uma peça de teatro, em que se anunciava uma cena de nu artístico. Por mais respeito que eu tivesse ao sacerdote, eu não pensei duas vezes. E se o padre estava certo, acrescentei mais um, à minha lista de pecados voluntariamente praticados.

Agora que tenho bem mais de dezoito, deparo-me com um vídeo divulgado em rede social, em que um padre diz ser pecado compartilhar conteúdos digitais de pessoas que atacam o texto da Campanha da Fraternidade. Como não costumo bater continência cega a ninguém, ostente ou não batina preta, resolvi eu mesmo conferir os conteúdos, tanto de um lado quanto de outro, depois de ter lido o texto da Campanha.

Fiquei triste com o que vi e ouvi. De um lado, os que alegam que o texto é um lixo porque exalta a ideologia de gênero e exala o cheiro da Teologia da Libertação. Como se não bastasse, os detratores do texto não se contentam na crítica das ideias, mas partem para agressão verbal a pessoas que o elaboraram, insultando-as como aborteiras ou chamando-as de esquerdistas, em tom depreciativo, como o de Odorico Paraguaçu quando chamava um padre de vermelhista. Na outra trincheira, autoridades eclesiásticas, com arrogância típica das palmatórias morais, desqualificam qualquer pessoa que faça suas críticas, rotulando-a de fanática ou diabólica.

Numa campanha voltada para a superação das polarizações, e que convida todos para uma ciranda ecumênica, esse bate-boca entre bolhas ideológicas pode ser tudo, menos diálogo. Falar em promover a cultura do amor e deflagrar uma guerra semântica é tão contraditório quanto defender a ditadura sob o escudo da liberdade de expressão, ou proteger a democracia com base em lei feita para a repressão. Diálogo na diversidade não é imposição de um pensamento único e não exige consenso, nem aqui, nem no Vaticano.

Penso que bate-boca desrespeitoso sobre doutrina de fé não deve ser parte do currículo de quem quer bater às portas do céu. Deus me perdoe se eu estiver agindo como o insensato que, como diz as Escrituras, não gosta da inteligência, mas de publicar o que pensa. Antes de compartilhar o que penso, fiz questão de passar e repassar alguns argumentos da controvérsia na peneira da razão. Também confessei que vestígios de rebeldia e fragmentos da Teologia da Libertação estão vivos em meu coração, tal qual a música que fez tocar a vitrola da minha memória.

 


Comentários

  1. PARABÉNS prof. Dr. Antônio pelo belíssimo texto!!!
    Em época de extremismo precisamos de uma lufada de lucidez, para peneirar a razão!

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    1. Obrigado, Júnior Madruga. Fico feliz com o seu comentário. Abraço.

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