Vacina, ciência e consciência

 


Sempre achei cativantes algumas expressões do nosso povo. Remédio bom para aperreio é ouvir “se avexe não.” Sobre um sujeito de sorte, basta dizer “lavou a burra”. E quando a gente vê um avião levantar voo! O aeroplano, pesado que só ele, faz finca-pé nas rodas do trem de pouso, e numa carreira desembestada, sai do chão com todo mundo lá dentro, para ganhar o céu como se fosse passarinho: “isso é uma ciência!”

Ciência, nessa exclamação tão genuína, é quase igual a sabedoria. Mais do que reverência a um saber metódico, a admiração é pela capacidade humana de criar ou fazer coisas incríveis. Ciência, sob esse olhar mais amplo, não é coisa somente de gente letrada. Diferenciar a planta comestível da venenosa ou fazer da floresta sua farmácia, isso também é ciência. No Brasil Colônia, no dizer de Gilberto Freyre, a vida de um doente estava mais segura nas mãos de um pajé do que nas de um médico vindo de Lisboa, que quase nada conhecia sobre doenças tropicais e sua cura pelas ervas medicinais.

Uma comparação dessas pode parecer exagero. Mas é reforçada por Richard Gordon, que escreveu sobre a literalmente assustadora história da Medicina. O médico daqueles tempos, segundo Gordon, vestia-se com casaco de cetim e calça de couro, usava meias de seda e sapatos com fivela. Nas mãos empunhava uma bengala ornada com cabo de ouro, onde armazenava vinagre aromático. Era decorativo, porém inútil.

Pacientes desse tipo de Medicina eram verdadeiras cobaias. A sangria era prática médica comum para equilibrar os fluidos corporais, conhecidos como humores. Cirurgiões limpavam o sangue das mãos no jaleco, num tempo em que a ciência imaginava que as doenças se espalhavam por emanações chamadas miasmas, e ignorava a existência de germes e bactérias. Teve até médico considerado louco por querer que profissionais de saúde tivessem de lavar as mãos para trabalharem nos hospitais.

Mas em meio às ignorâncias próprias e alheias, a ciência consegue evoluir e melhorar a vida da humanidade. Prova disso é a vacina. Depois de sua invenção e aplicação mundo afora, muitas doenças foram erradicadas, milhões de vidas humanas foram preservadas.

É claro que o conhecimento e a prática sobre a vacina se modificam com o passar dos anos. Nem é preciso recuar muito no tempo para demonstrar isso. Lembro bem quando, saído da meninice, enfrentei a fila para tomar a vacina contra meningite, durante o surto que o governo militar tentou esconder. Era um empurra-empurra danado, gente perdendo a chinela japonesa, e os braços de todos para serem vacinados pela mesma pistola. Parecia que estavam vacinando boi. Anos mais tarde, li que nem se usa mais aquele tipo de pistola, devido a riscos de contaminação e lacerações na pele, o que, penso eu, era ignorado pela ciência da época.

Agora me vejo na expectativa de logo entrar na fila da vacina contra a covid-19. Entre trancos e barrancos das ignorâncias alheias à ciência, do descaso e negacionismo de quem espalha sementes de trevas por onde passa, a vacina aportou por aqui. E para que ela realmente triunfe, é preciso não só ciência, mas consciência. Que o começo da vacinação não seja pretexto para gente sem noção, anônimos ou celebridades, promoverem aglomerações. Que a punição seja exemplar para os fura-filas da vacina.

Com a graça de Deus, a vacina há de ser a porta de entrada para a pós-pandemia. Mas até lá, ninguém pode descuidar do uso da máscara e de lavar as mãos. Se aguentamos até agora, não custa esperar mais um pouco para matar a saudade de abraços que permanecem em stand by. Não é só falta de oxigênio ou de vacina que causa morte e sofrimento. Falta de consciência também mata.

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