Jogando Caxangá




Em 1973, quando da gravação de um LP, Milton Nascimento foi vítima da censura. Parte das letras de suas melodias foram proibidas. Uma delas, Os Escravos de Jó, feita em parceria com Fernando Brant, expressa a resistência de quem luta para viver, vive para morrer, e enquanto a morte não vem, vive de brigar com o rei.

Mas Milton não se deu por vencido. Nas partes proibidas da letra, caprichou na vocalização, convencido de que as modulações da voz expressariam as emoções das palavras amordaçadas. Cumpriu, assim, o que desabafou para um amigo: botar no som o que tinha sido mutilado na letra.

Não foi só isso. Convidou Clementina de Jesus para cantar com ele. Na gravação é possível sentir que, apesar de pronunciar poucas frases da última estrofe, junto com o lá-lá-rá-ê repetido na música, a voz lindamente negra e forte de Clementina parece brotar de quilombos e senzalas, num canto de resistência.

Em 1977, a canção foi gravada por Milton Nascimento e Elis Regina. Num vídeo divulgado em sua rede social, o cantor chora ao rever a cena de um especial de TV daquele ano, em que a cantora interpreta a música ao seu lado, com a letra libertada à inteireza. Mas em vez de Os Escravos de Jó, a canção passou a se chamar Caxangá.

Na cantiga que animava minhas brincadeiras de menino, os escravos de Jó jogam Caxangá, em que se deixa o Zambelê ficar, e guerreiros fazem zigue zigue zá. A letra da melodia tem provocado discussão. Tem até quem proponha trocar algumas palavras, substituindo guerreiros por festeiros, e escravos por amigos de Jó.

Como observa Andriolli Costa, apesar das várias pesquisas sobre o assunto, temos mais palpites do que certezas. Desde a suposição de apropriação pela cultura negra, da figura do Jó bíblico, como símbolo do homem rico, até a ideia de que o zigue zigue zá era o ziguezague dos escravos para escapar do capitão-do-mato.

A pistas seguidas pela pesquisa de Andriolli levam à ideia de que os escravos de Jó da cantiga tradicional não remetem ao Jó da Bíblia, mas aos escravos domésticos do Brasil. Zambelê, por sua vez, teria derivado do nome português Zé Pereira, enquanto outras palavras ainda precisam de maior investigação.

Tenho bons motivos para seguir na direção dessas pistas. Também não cogito em reprogramar minha mente para mudar uma só palavra da cantiga nela entranhada. E não é só pela memória afetiva, mas pela importância da referência a escravos, seus jogos, seus guerreiros e seu cantar, tudo isso como parte de sua luta.

Até nos porões dos navios negreiros, os escravos usavam o canto como resistência. Apesar das condições desumanas a que eram submetidos, fontes históricas comprovam que eles cantavam nessas viagens. Cantar, lembra o professor Paulo da Costa e Silva, faz vibrar o corpo inteiro e projeta vibrações para além do corpo. Cantar era lutar pela sobrevivência.

Os sobreviventes eram subjugados ao destino da vida negra de escravo. Mas a música também fazia parte desse cotidiano, ainda mais porque na tradição de muitas aldeias africanas, que os escravos trouxeram até nós, música não se separa da vida. A canção de Milton Nascimento evoca as vozes negras nos cantos de trabalho, luta e resistência, vozes que continuam necessárias até hoje.

É fundamental ouvir vozes negras que se levantam contra o racismo e a injustiça. É inspiradora a figura de um super-herói que espalha pelo mundo a reverência aos guerreiros de Wakanda. Num mundo em que ainda existe vida de escravo, não vejo como abrir mão de guerreiros ziguezagueando, enquanto continuamos jogando Caxangá.

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