O destino da palavra

  



Ainda menino, aprendi uma música que fala do destino da palavra. A letra diz que palavra não foi feita para dividir ninguém, que ela é ponte onde o amor vai e vem. Naquele tempo eu já me sentia tocado por aquela música. Mas nos limites da semi-inocência de um garoto, e de uma época em que o tráfego na ponte das palavras era bem menor e mais lento. Ultrapassados esses limites, essa música me faz pensar sobre o destino que damos à palavra em nosso mundo, principalmente com a velocidade turbinada pelas redes sociais no tráfego dessa ponte. 

Nestes dias, diante da repercussão pelo cumprimento de uma ordem judicial para a realização de um aborto legal em uma criança vítima de estupro, pude ver como, diferente do que diz a canção, a palavra pode também ser ponte onde o ódio vai e vem. Como católico e profissional do mundo jurídico, bem sei que a vida é dom de Deus e o maior bem protegido pelo direito. Mas a questão não é tão rasa para ser manipulada maniqueisticamente. 

Não há direitos absolutos nem doutrinas religiosas absolutas. Absoluto, só Deus. Não custa lembrar que somente em 2018 foi alterada a redação do Catecismo da nossa Igreja, no parágrafo que trata da pena de morte. A partir de então, esta passa a ser inadmissível por atentar contra a inviolabilidade da pessoa. Mas antes disso o texto dizia que o ensino tradicional da Igreja não excluía a pena de morte, depois de comprovada a identidade e responsabilidade do culpado, se essa fosse a única via para defender a vida humana contra o agressor injusto. Eu nunca me conformei com aquele preceito. Isso, porém, não me dava o direito de, antes da mudança, sair por aí falando mal de minha Igreja. 

Mesmo sem falar em aborto ou pena de morte, existem casos em que é preciso escolher entre o direito à vida de uma pessoa e o de outra. Se a ordem jurídica inocenta quem mata em legítima defesa ou em estado de necessidade, por exemplo, temos o direito de chamar de assassina uma menina, vítima de um destino de vida que não desejamos para nossas filhas, enquanto brandimos símbolos religiosos como se fossem armas? Ou fazer como um líder religioso que, numa rede social, disse que a menina gostava de ser abusada? De tão absurdo o comentário, ele depois se retratou da palavra infeliz que havia dito. 

Para que a palavra não se transforme numa ponte onde o ódio vai e vem, melhor pensarmos bem antes de dizer ou escrever publicamente qualquer coisa. O que leva um desembargador a destratar um fiscal que cumpre a lei, dando-lhe uma carteirada e chamando-o de analfabeto? Ou uma juíza a escrever numa sentença o termo raça relacionado a uma conduta ilícita? E os dois, dias depois, a exemplo do líder religioso, a apresentarem publicamente suas desculpas pelas palavras antes proferidas? 

Todos nós, com nossas luzes e trevas, estamos sujeitos a cometer injustiças e usar mal a ponte que deveria dar passagem ao amor que vai e vem. Por isso mesmo, a começar por mim, devemos ter cuidado quando dirigimos a palavra ao outro, não por tolerância utilitarista, do tipo eu te tolero para que tu me toleres, mas porque o outro é igual a mim, é um outro eu.

Isso não quer dizer que não possamos falar palavras duras contra o que merece ser combatido. Amar não é dizer o que o outro quer ouvir, não é agradar a plateia com palavras lambuzadas no mel da hipocrisia cerimoniosa ou da demagogia interesseira. É dizer o que é preciso, expressar o que vem do coração, mas nunca por ódio ou desejo de destruir o outro, e sim para ajudar na sua edificação. Como também diz a canção, palavra não foi feita para dominar, para cultivar a vaidade, nem para semear tristeza, pois o destino da palavra deve ser a construção de um mundo mais feliz e mais irmão. 


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