Calabar e o boi voador




Eu, de férias e confinado, pude exercer meu direito à desconexão do trabalho remoto. E me pus a desarrumar e rearrumar minha biblioteca. Nesse trabalho cansativo e prazeroso, me detive em folhear livros que ganhei de pessoas a quem quero bem.

No meu aniversário em 1986, meus amigos de república estudantil me deram de presente “Calabar, o elogio da traição”, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Nas dedicatórias, votos de que eu me tornasse um bom profissional, de que tivesse fé na vida, e um convite para “viver, lutar, dançar, dançar... até morrer e começar de novo!”

Passei, então, a reler aquele texto dramático, agora não mais com um olhar de quem, ainda estudante, inquietava-se com o horizonte da vida, e sim com o de quem já pode, com certa serenidade, contemplar-lhe o retrovisor. Quando falo em texto dramático e não teatral, lembro do que aprendi com a Teoria da Literatura de Vitor Manuel, outro livro que continua vivo na minha biblioteca. Pois a peça de teatro foi escrita em 1973 e censurada no ano seguinte, só sendo liberada para encenação em 1980. Entretanto, o livro continuou sendo publicado. Como dizem alguns comentaristas, a ditadura tinha dessas coisas. Podia liberar uma música e censurar-lhe a letra. E foi imaginando falas e sons que poderiam fazer aquele texto ganhar vida, que revisitei os dois atos da peça.



No primeiro, destaque para Calabar, embora este nem apareça em cena. Afinal, ele é o desertor invisibilizado, executado a toque de caixa para não comprometer figuras importantes com eventual delação premiada, sendo-lhe negado até o direito do condenado às últimas palavras antes da execução. Seu drama se expressa pela voz da sua amada Bárbara que, enquanto é lida a sentença de morte, canta a canção Tatuagem: “quero ficar no teu corpo feito tatuagem, que é pra te dar coragem pra seguir viagem quando a noite vem.”


No segundo, que se passa alguns anos mais tarde, tudo gira em torno do Conde Nassau, o príncipe do Brasil holandês, talvez sonhado por Domingos Fernandes Calabar, e que deixou suas marcas não apenas na cidade Maurícia. Governo de tolerância religiosa, de planos de melhoria para educação, de incentivo às artes e à cultura, de importantes obras de urbanização. E se o povo da cidade não tinha fé na construção da primeira ponte de grande porte do país, dizendo ser mais fácil um boi voar, Nassau chegou a investir do próprio bolso para sua construção, e a inaugurou com o espetáculo do boi voando.

Mas o que será que fez Calabar passar para o lado do invasor holandês, o que abriu caminho para o governo de Nassau? Teria sido Domingos Fernandes o contrabandista de que falou Frei Manuel Calado? Mudou de lado para garantir segurança para a família? A motivação foi financeira ou, porventura, religiosa? Terá sido questão de honra por ele ter sofrido discriminação racial, ou foi por amor à terra natal? Essa especulação histórica não é a reflexão mais importante que se pode tirar da peça, mas a de que para a história oficial existem traidores e traidores, pois como diz o texto: “o traidor se chama Calabar. Outros terão levado segredos, outros terão levado propinas, mas esses sabem se portar.”

Nos tempos do Brasil holandês houve até padre que virou e revirou a casaca, e nem por isso entrou para a história como traidor. E não é demais lembrar que quando Calabar foi executado, em 1635, vivíamos sob a colonização de Portugal que, por sua vez, estava sob domínio espanhol, ou seja, éramos colônia da colônia. Por isso, quando se lê no livro a fala do oficial a ler a sentença: “que seja morto de morte natural para sempre na forca... por traidor e aleivoso à sua Pátria e ao seu Rei e Senhor...”, podemos nos perguntar: que Pátria, que Rei, que Senhor? Pois como diz Bárbara: “para se ver o traidor é preciso mostrar a coisa traída.”

Desarrumar e rearrumar a biblioteca me fez bem. Me fez pensar que há muito deixei de ser aquele estudante de vinte e poucos anos, a quem os colegas faziam votos de fé na vida e de êxito profissional; que de lá para cá vivi minha história pessoal como fragmentozinho da história da pátria, com seus novos colonialismos, altos e baixos na economia, na questão social e na política; que nesta, dependendo do lado que se esteja, vira-casaca pode virar herói ou vice-versa, porque nela até boi pode voar. Mas nunca esqueci que no meio de tudo isso é preciso “viver, lutar, dançar, dançar... até morrer e começar de novo!” Se Deus quiser.

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