Papo‌ ‌reto‌




Entramos‌ ‌em‌ ‌mais‌ ‌um‌ ‌ano‌ ‌bissexto‌ ‌que,‌ ‌para‌ ‌alguns,‌ ‌é‌ ‌cercado‌ ‌de‌ ‌superstições.‌ ‌ Uma‌ ‌delas,‌ ‌vinda‌ ‌da‌ ‌Irlanda,‌ ‌é‌ ‌que‌ ‌no‌ ‌dia‌ ‌29‌ ‌de‌ ‌fevereiro,‌ ‌as‌ ‌mulheres‌ ‌podem‌ ‌pedir‌ ‌a‌ ‌ mão‌ ‌dos‌ ‌homens‌ ‌em‌ ‌casamento.‌ ‌Reza‌ ‌a‌ ‌lenda‌ ‌que‌ ‌Santa‌ ‌Brígida‌ ‌de‌ ‌Kildare,‌ ‌vendo‌ ‌que‌ ‌ muitas‌ ‌mulheres‌ ‌cansavam‌ ‌de‌ ‌esperar‌ ‌o‌ ‌pedido‌ ‌de‌ ‌casamento‌ ‌de‌ ‌seus‌ ‌namorados‌ ‌ embromadores,‌ ‌queixou-se‌ ‌a‌ ‌São‌ ‌Patrício,‌ ‌que‌ ‌baixou‌ ‌um‌ ‌decreto‌ ‌autorizando‌ ‌as‌ ‌ mulheres‌ ‌a‌ ‌inverter‌ ‌os‌ ‌papéis‌ ‌tradicionais‌ ‌do‌ ‌pedido‌ ‌nesse‌ ‌dia.‌

No início dessa movimentação política, também é possível sentir o cheiro da fumaça preta da discórdia. Envolvida pelo discurso do ódio entre facções políticas, muita gente pode cair na tentação da intriga no seio das famílias, das escolas e até das igrejas, pois a briga em razão de política é mais comum no meio dos eleitores do que entre os candidatos. Daí a importância de cultivarmos o diálogo, e não a troca de insultos, entre pessoas que pensam diferente.

Para incentivar o diálogo democrático e tentar reduzir os males do bate-boca incitado pelo fundamentalismo político, organizações da sociedade civil estão propondo iniciativas para ensinar gente que discorda a conversar. Este é o tema da matéria Bicudos que se beijam, da Revista Veja, assinada pela jornalista Maria Clara Vieira.

Entre essas iniciativas, a plataforma Pacto pela Democracia planeja promover debates sem baixaria em diversas cidades brasileiras. No ano passado, aquela entidade, em bate-papos chamados de Diálogos Democráticos, reuniu integrantes de partidos de espectros ideológicos distintos, em conversas sadias sobre temas importantes para o país.

Por outro lado, o projeto Despolarize, idealizado pelo advogado Rafael Poço, tem promovido a campanha Embaixadores do Diálogo. Com o intuito de contribuir para uma sociedade que não se deixe envenenar pela polarização, são produzidos guias práticos para conversas saudáveis, com base em conhecimentos sobre ciência comportamental, negociação e comunicação não-violenta.

A matéria da revista apresenta ainda sete dicas para se estabelecer o que chama de papo reto. A primeira é motivação. Refletir sobre a razão da conversa. Se a pessoa não estiver disposta a ouvir, e a motivação for apenas mostrar que é dona da verdade, nem vale a pena iniciar o debate, pois nem haverá diálogo, mas bate-boca. A segunda, atenção, sugere que se considere as particularidades do interlocutor, idade, cultura, religião, entre outras, não exigindo que ele seja igual a você. A terceira tem a ver com os limites. Se o diálogo chegar a um ponto inegociável, melhor mudar o rumo da prosa. A quarta, relativização, aconselha que cada um expresse o que pensa como seu ponto de vista e não como verdade absoluta. E como ninguém é dono da verdade, chegamos à quinta dica, a aceitação. Partir do pressuposto que o outro sabe coisas que a gente desconhece, nunca menosprezando a experiência alheia. A sexta, transparência, recomenda deixar claro ter entendido o ponto de vista do outro. Por fim, e a meu ver, o mais importante, é o respeito. Jamais tratar o outro como bobo, ingênuo ou mau.

Não desconheço que sobre certos temas e com certas pessoas nem é possível manter um diálogo democrático. Discurso de ódio e apologia a qualquer forma de totalitarismo, por exemplo, merecem reação contrária veemente. Mas esta não significa baixaria, da mesma forma que liberdade de expressão não se confunde com provocação gratuita ou direito de escandalizar os outros. É possível uma discussão contundente com respeito e elegância, coisas que podem nos ajudar a manter o papo reto neste ano bissexto, de eleições municipais.

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