Guerras, poesia e partidos

A Segunda Guerra Mundial deixou marcas profundas na humanidade. Não existem números exatos sobre perdas humanas e materiais resultantes do conflito. Como observa Hobsbawm, as perdas humanas são incalculáveis, pois diferente de outras, aquela guerra exterminou tão prontamente civis quanto militares, e grande parte da carnificina ocorreu em lugares ou ocasiões em que não tinha ninguém para contar os mortos ou se preocupar com a matança. Não bastasse isso, as novas tecnologias levaram a uma nova impessoalidade na arte de matar. Não era mais necessário ao soldado contemplar diante de si um ser humano eviscerado pela baioneta. Bastava apertar um botão, que os inimigos não passariam de mais um alvo atingido, vítimas invisíveis das máquinas de extermínio de última geração.
Meu pai sempre se interessou em estudar episódios da Segunda Guerra. Ele era adolescente quando a guerra começou, e acompanhava as notícias pelo jornal, lido pelo irmão mais velho, diante da atenta plateia de amigos e familiares. Anos depois, passou a colecionar uma revista semanal sobre episódios do conflito armado. Ele costumava rubricar a capa de cada uma daquelas revistas, que são para mim uma das primeiras lembranças da infância. Eu, ainda sem saber ler, ficava impressionado com as fotografias, desenhos e mapas estampados naquelas páginas, enquanto meu pai ficava com receio de eu rasgar as revistas. Ele teve, então, o cuidado de mandar encaderná-las, num volume que ficou para mim como herança de algo que nos uniu desde que eu me entendi por gente.
Foi durante a Segunda Guerra que Carlos Drummond de Andrade escreveu A Rosa do Povo. Nos mais de cinquenta poemas que compõem o livro, convivem as marcas da guerra exterior com as de conflitos íntimos do ser humano. Como preencher o rombo causado no coração da humanidade pelos horrores do nazifascismo e pela Rosa de Hiroshima, de que fala o poema de Vinícius de Moraes? Se as ciências, as tecnologias e as multinacionais promoveram e financiaram não só o progresso, mas a destruição, não sendo luzes no caminho da humanidade, como a poesia poderia iluminar aquele mundo cheio de desencanto? No poema Nosso Tempo, Drummond capta com maestria a sensação que pairava na época, quando diz “este é tempo de partido, tempo de homens partidos.” 
Naquele tempo, foram grandes as rupturas em como pensar o mundo. Radbruch, atordoado com o que o nazismo foi capaz de fazer, fez circular os Cinco Minutos de Filosofia do Direito, em que põe em dúvida a lei do soldado, de que ordens são ordens, e a máxima do jurista, de que lei é lei, como se nada pudesse conter a fúria da norma pela norma, no absolutismo do direito positivo. A construção de campos de extermínio, que descartavam pessoas como lixo, estremeceu as bases da tradição dos direitos humanos, que precisaram ser reconstruídos. Não é à toa a advertência de Adorno, de que a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação depois daquele tempo.
Poesia é linguagem ritmada capaz de interrogar o mundo. Diz Octavio Paz que a poesia é forma natural de expressão presente em todos os tempos, e que não existe povo sem poesia.  Forma privilegiada de ficção, mais do que aos sonhos, ela nos leva aos pensamentos, como lembra Valéry. Ao mesmo tempo, sendo linguagem intransitiva, ela é magia e encantamento, que excita “os nervos do espírito.” A Rosa do Povo é exemplo de poesia comprometida com questões sociais sem ser panfletária. Ela nos conduz a pensamentos e sentimentos sobre a vida num mundo em estilhaços. 
Não vivemos hoje um conflito bélico geral, como o que irrompeu na adolescência de meu pai, o das ilustrações das revistas que guardo como relíquia. Mas vivemos outras guerras, algumas visíveis, outras, nem tanto. Em vez de eliminar fronteiras, a tentação é construir muros; em vez do diálogo sincero, cultivamos intolerância e nos entrincheiramos em bolhas ideológicas de redes antissociais. 

Neste mundo partido, cada vez mais somos chamados a tomar partido. O melhor deles pode ser o da poesia, que atua não apenas no mundo das ideias, mas é capaz de tocar o coração, de onde nascem o bem e o mal que norteiam nosso agir. Talvez a poesia, como inspiração para a vida, ajude-nos a refundar o mundo como casa de todos, habitável por homens e mulheres menos partidos.

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