O Rei Leão e a escuridão dentro de nós

O jornalista sul-africano Rian Mala relata a magia que aconteceu na mente de Solomon Linda. Em 1939, Solomon acabou por criar uma música que ganhou o mundo e enriqueceu muita gente. Menos ele, que terminou seus dias na pobreza e quase nada deixou para os seus. Como resume o artigo publicado na revista Rolling Stone, o homem zulu fez a magia. Então, o homem branco fez dinheiro.

Igual a outros jovens africanos do seu tempo, Solomon tinha deixado a terra natal à procura de trabalho em Joanesburgo. Durante o dia, fazia trabalhos braçais. À noite, era vocalista do grupo musical Evening Birds. Na época, era comum homens negros, nas horas vagas, formarem grupos de canto, que animavam casamentos e participavam de competições de corais.

Quando Solomon trabalhava como empacotador de discos numa gravadora, o Evening Birds fez algumas tentativas para gravar um canto à capela. Enquanto os outros componentes repetiam a expressão zulu “Mbube”, que pode ser traduzida como “leão”, Solomon improvisou as quinze notas musicais, que anos mais tarde tornaram-se a canção The lion sleeps tonight, um dos grandes sucessos da trilha do filme O Rei Leão. Na cena desse clássico da Disney, Timão e Pumba caminham pela savana africana a cantarolar. Timão faz o solo do “hoje à noite, aqui na selva, quem dorme é o leão”, enquanto Pumba repete o refrão “Aiumauê”, que nada mais é do que a transformação do original “Mbube”.

A saga transcultural dessa canção é resgatada no episódio O rei leão e o músico esquecido, da série Remastered, da Netflix. Dez anos depois do improviso de Salomon, o refrão da versão original encantou um pesquisador de música folk, que batizou a música como Wiomoweh, aproximação fonética em inglês do refrão zulu. Depois a canção foi sendo reelaborada, com letra em inglês, gravada com grande sucesso pelo grupo The Tokens, até chegar ao auge com o lançamento da animação O Rei Leão, em 1994. Os dois dólares recebidos por Salomon, como pagamento feito pela gravadora pelos direitos da música, renderam mais de quinze milhões, fazendo fortuna de quem explorou a música economicamente. E só depois de uma intensa batalha judicial contra os Studios Disney, as herdeiras de Solomon receberam alguma indenização, num acordo cujo valor ninguém sabe ao certo, em razão de cláusula de confidencialidade.

Mais do que a história da música, o documentário toca na dura realidade dos negros no regime de segregação na África do Sul. A exploração sofrida, o medo e as tensões no relacionamento com os brancos. Tudo isso também afetou a relação entre o próprio Rian e as herdeiras de Salomon, marcada ao mesmo tempo pelo afeto e pela desconfiança. Em dado momento, o jornalista diz que diante de relações conflituosas e mal resolvidas como aquelas, a confiança é tudo o que temos contra a escuridão dentro de nós.

Depois de vinte e cinco anos do lançamento do desenho, O Rei Leão volta às salas de cinema de todo o mundo. Desta feita, numa primorosa produção, apresentada como um live-action sem humanos. E a canção continua a ser entoada pelos personagens, nessa hiper-realista animação computadorizada.

Fui assistir à nova versão, e não tive como deixar de fazer comparações com o que senti ao ver o desenho, vinte e cinco anos atrás. Fiquei impressionado com a exuberância visual do filme. Tudo muito bonito. Mas fiquei frustrado comigo mesmo por uma coisa. Diferente do que fiz junto com meus sobrinhos, ainda meninos à época, desta vez não consegui chorar. Nem na cena da morte do pai de Simba, quando o leãozinho, desesperado sobre o corpo inerte de Mustafa, tenta em vão acordar o pai.

Pensei em várias causas para que isso tenha acontecido. Teria eu criado demasiada expectativa em ser tocado de novo pela cena comovente? Será que a sofisticada tecnologia cinematográfica deixou os personagens menos “humanos”? Ou terá sido minha implicância interior com uma senhora, ao meu lado, que em vez de se concentrar no filme, ficou o tempo todo dedilhando o celular nas redes sociais? Pode ter sido tudo ou nada disso. Mas toda a saga que envolve a música de Solomon não me deixou esquecer que nas relações humanas, mesmo naquelas que projetamos nos animais, para além de todas as tecnologias do mundo hiper-real ou virtual, o que nos toca mais fundo não é o que enche os olhos, mas o que embala o coração. E é dentro dele que deve reinar a confiança, sem a qual nenhuma relação humana se sustenta, pois é tudo o que temos contra a escuridão dentro de nós.

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