Não tem preço


Paulo Honório era um menino que guiava cego e vendia cocadas da velha Margarida, que o criou. Até os dezoito anos, gastou muita enxada para ganhar cinco tostões por doze horas de trabalho. Nessa época, como diz o personagem-narrador do livro São Bernardo, de Graciliano Ramos, praticou seu primeiro ato digno de referência. Esfaqueou um homem e acabou na prisão. Lá aprendeu a ler com Joaquim sapateiro, “que tinha uma bíblia miúda, dos protestantes.”

Ao sair da prisão, não pensava em outra coisa a não ser ganhar dinheiro. Pegou empréstimo com um agiota e, a partir daí, fez todo tipo de artimanha, cometeu crimes e injustiças, até se tornar fazendeiro. Percebeu, então, que precisava de um herdeiro para tudo aquilo, o que lhe fez pensar em se casar com a professora Madalena, sobrinha de d. Glória. Perguntou à tia da moça por que Madalena não procurava marido, no que d. Glória respondeu que sua sobrinha não era feijão bichado para andar se oferecendo. Paulo Honório disse não ser esse o caso, mas que Madalena deveria garantir o futuro. Dias depois, Paulo Honório apareceu à Madalena e lhe propôs casamento. Ela se mostrou agradecida, mas disse que era pobre de Jó. Ele, porém, retrucou: “-- Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a acordo, quem faz um negócio supimpa sou eu.”

Não só o casamento, mas tudo na vida de Paulo Honório era visto como negócio. Tudo dele era na ponta do lápis. Seu autoritarismo acabou por anular a esposa, levando-a ao suicídio. Teve um bate-boca com ela com uma semana de casamento, só porque Madalena disse que achava pouco o pagamento do contador da fazenda, já velho, que poderia querer se aposentar. Paulo Honório zangou-se: “-- Ora gaitas!”, disse ele. “Meta- se com os romances”. E continuou: “é tolice querer uma pessoa ter opinião sobre assunto que desconhece. Cada macaco no seu galho. Que diabo! Eu nunca andei discutindo gramática...”

Noutro dia, Madalena foi à escola, não gostou do método do professor da fazenda, e pediu que fosse comprado material para os alunos. Quando a fatura chegou, o marido abalou-se: “Seis contos de réis. Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábua para os filhos dos trabalhadores. Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia de capa preta...”

Mesmo depois da morte de Madalena, e de reconhecer que estragou sua vida estupidamente, Paulo Honório parece não ter aprendido a lição de que nem tudo na vida é uma questão de se fazer conta do que se gasta. Logo no início da narrativa, sabemos que ele acolheu, na fazenda, a doceira que o criou, a quem se refere como mãe Margarida. Mas não deixa de comentar: “a velha Margarida mora aqui em S. Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu.”

Nestes tempos em que o liberalismo econômico é apregoado como redentor do mundo, as lições de São Bernardo podem ser úteis. Ninguém é ingênuo para não saber que dinheiro é o que move o mundo do capitalismo, cujo oxigênio é o lucro. No entanto, mesmo o capitalista sabe que não é bom negócio colocar o lucro acima da vida, causando morte de inocentes com a lama dos rejeitos de sua riqueza. Empresários podem ser bem- sucedidos, sem desrespeitar direitos dos empregados, chamados de colaboradores, quando este apelido lhes convém. E governantes não devem perder de vista os cuidados com reformas que atinjam o direito ao trabalho decente e a aposentadoria digna. Assim como Paulo Honório perdeu o que poderia humanizar sua vida, fazer conta de tudo, tratando o direito à vida digna como preço de mercadoria, pode tornar ainda mais injusta a nossa ordem econômica e social.

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